Publicado em: 10 de julho de 2025
Na sexta-feira passada fui ver uma casa morrer. No dia seguinte ela seria entregue, como foi, para uma incorporadora, que a iria (que a vai) demolir – com vagas sugestões de que a fachada poderia preservada (talvez) – a fim de que, em seu lugar, seja construída uma torre de muitos pavimentos para moradias privilegiadas.
(Há toda uma ontologia por trás da ilusão social de que preservar fachadas preserva a história…)

Confesso que meu planejamento para aquela sexta-feira era orbitar meu dia em torno do jogo do Fluminense contra o El-Hilal, da Arábia Saudita, na semifinal da Copa do Mundo de Clubes. Pretendia encaminhar as coisas do trabalho e fazer essa gentileza, a meus amigos, resolvendo tudo no período da manhã. Julguei que minha missão de tipo “comando especial de resgate” seria de uma hora, no máximo. Resgatar uns dez álbuns de fotografias… Fácil…

Porém, meu planejamento mudou; radicalmente. A começar pelo fato de que não eram dez álbuns, mas uns quarenta. Em seguida, pelo fato de que encontrei uma biblioteca com uns mil livros e revistas antigas. E, terceiro, porque vi pilhas de coisas que seriam deixadas para traz. Por fim, porque olhei ao redor e vi objetos, quadros, desenhos, coisas.

Era a casa de amigos, pessoas queridas, e fui até lá com o objetivo de buscar apenas esses álbuns de fotografia. Meus amigos não podiam fazê-lo, um por motivos de saúde e a outra porque reside fora de Belém. Resgatei os álbuns, para entregar a eles. Porém, olhei ao redor e vi aquela cena de casa agonizante, vivendo seus últimos dias, suas últimas horas. Percebi que uma quantidade imensa de coisas ficavam para trás. Os álbuns, eu levava, mas o chão estava cheio de muitas outras coisas, de pilhas de coisas.

Os montes de memória se espalhavam ao longo das salas e do corredor, ao longo dessa casa que ia (que vai) morrer. Todo um universo de passados alheios: fotografias, cartas, desenhos de crianças, mapas, documentos, fitas VHS, disquetes, cacos, molduras de fotografia, medalhas… sim, e muitos livros, essa biblioteca com uns mil livros e revistas.

E, para além disso, muito mais: portas, lustres, gradis, móveis, pisos de tábuas antigas, ladrilhos, escadas, paredes… Olhando bem, vi passados, coisas invisíveis. Ouvi vozes (maneira de dizer – pois não sou propenso a fantasmagoria de nenhuma espécie). E ouvi coisas, murmúrios, rezas, danças, risos e (até) segredos.
E eu lá, vestido com a minha camisa do Fluminense… perambulando em meio a futuras ruínas, caminhando no silêncio da casa que que ia (que vai) morrer.
Como disse, eu fui lá, apenas, para buscar uns álbuns. Não obstante, percebi que havia, ao meu redor, todo um prédio que ia morrer levando consigo muitas histórias.
Com imenso pesar de ver essas coisas sendo sepultadas, numa demolição impiedosa, telefonei ao meu amigo e ele me autorizou a recolher, a salvar, o que podia resgatar dali. Meu dia foi profundamente modificado e influenciado por essa visita. Imediatamente percebi que meu projeto de ver o Fluminense jogar seria desativado. Iniciou-se uma verdadeira operação resgate. Preenchi meu carro de passado. Um passado pesado, um passado de uns duzentos quilos de carga. Nem sei como tive forças – considerada minha hérnia inguinal e os problemas de coluna – mas logo percebi que isso era pouco: o que cabia no meu carro era pouco. Percebi que meu carro cheio não dava para quase nada. Percebi que precisava de apoio.
Iniciou-se a fase intensa do comando especial de resgate. Com o carro abarrotado, dirigi, da Braz de Aguiar, até a Av. 25 de Setembro, passando a feira, e contratei um caminhão de mudança. Enchemos o caminhão. Eu não tinha condições, nem temporais, nem técnicas e nem financeiras, de resgatar portas, tábuas, ladrilhos, lustres e coisas similares, mas podia levar livros, papeis, quadros, desenhos, álbuns e, bem, …afetos. Um caminhão de mudança, mais meu carro. Era pouco, mas era o possível.
Fluminense 1 a zero. 39 minutos do primeiro tempo. Rumamos até o Anjico, meu sítio em Ananindeua. Um dos homens da mudança, meio indignado (não sei por quê caminhões de mudança não gostam de transportar “futilidades”), queria saber o que eu ia fazer com esses livros e papeis velhos (a maioria deles estava, realmente, em péssimas condições). Eu disse que ainda ia pensar nisso. O outro homem da mudança me avisou que devia ter cupim nessa “velharia” e que podia estar “colocando cupim” na minha casa. Agradeci o aviso e informei que iria correr o risco.
Empate no jogo. Aos 5 minutos do segundo tempo, Marcos Leonardo empatou para o time saudita.
Ajudei o pessoal a descarregar o material. O seu Valdir, dono do caminhão, me disse: “Carga estranha, moço”.
“É, seu Valdir, nem sempre a gente escolhe a carga que vai transportar, o senhor não acha¿”
Ele achava. Concordou comigo, pensativo. E, aos poucos, um caminhão inteiro de mudanças descarregou papeis e coisas velhas, coisas que não eram minhas, na minha casa.
“Cuidado com os cupins, moço!”.
Agradeci novamente pela recomendação. Por via das dúvidas, espalhei na casa umas boas doses do “Poderoso” – o melhor veneno para cupins que já encontrei e que tenho em litros, no meu sítio.
“O senhor vai ler tudo isso¿”
‘Vou sim, é claro que vou”, respondi, evidentemente sabendo que não iria. Gosto de ver o olhar incrédulo das pessoas quando digo coisas desse tipo. Como já tenho uns oito mil livros em casa, na Biblioteca Horatiana, sabia que os recém chegados seriam bem recebidos. Os livros da minha biblioteca são muito bem educados e recebem cordialmente seus visitantes.
O caminhão foi embora. Peguei uns quadros salvos por esse comando especial de resgate e botei no meu carro. Retornei a Belém, levando esses quadros até a casa do meu amigo. No caminho fui escutando, pelo rádio, o final do jogo do Fluminense contra o El-Halal. Aos 24, Hércules marcou o dois a um.
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos.
Cheguei à casa de meu amigo pouco antes do jogo terminar. Creio que ele ficou surpreso com as imagens trazidas. Nem sempre percebemos o que pode morrer com nossa casa quando nossa casa vai morrer.
Meu amigo é torcedor do Flamengo, mas uma de suas irmãs, já falecida, era tricolor. Ele me conta esse fato, um tanto comovido. Todos nós, afinal, vez por outra, nos comovemos com a memória das pessoas que amamos. Final de jogo. O Fluminense estava entre os quatro melhores times do mundo e me remetia a novas tarefas de torcida, na próxima terça-feira. Na próxima terça eu verei o jogo, isto é certo. Isto é muito certo.
Sigo em direção à minha casa. Por alguma razão, esqueço do Fluminense.
Por alguma razão, continuo pensando na casa de meu amigo que ia (que vai) morrer. Que vai ser demolida, para que, sobre ela, se construa um prédio. Um prédio que vai tornar a cidade ainda mais calorenta.
Sei que meus amigos, que viveram nessa casa e onde foram muito felizes, devem estar sentindo muito com a sua demolição. Aliás, sei que essa casa tem (tinha… teve…) muitas e incríveis histórias. Talvez um dia eles as contem – ou eu mesmo, quem sabe. Também sei que todos nós gostaríamos que, como num conto de fadas, esta crônica sensibilizasse a incorporadora a não demolir a casa que vai morrer (que ela, a incorporadora, vai demolir). Ou que, ao menos, retirasse, cuidadosamente, o patrimônio arquitetônico que se constitui como portas, escadas, pisos, ladrilhos, lustres, louças, vidros… e doasse tudo isso para algum órgão público e que esse órgão público preservasse a cultura.
Isso porque a casa que ia (que vai) morrer não é qualquer casa, não é, mesmo, qualquer casa. É uma casa que, embora não seja famosa e não habite o imaginário dos arquitetos e historiadores, muito facilmente poderia se enquadrar na categoria de um “palacete belemense”. Sim, sei muito bem que essa categoria é capiciosa, mas ela tem uma tradição narrativa que merece ser escutada. Todos queremos que Belém proteja seu patrimônio histórico, mas todos sabemos, também, como o presente (senão mesmo o capial, sinônimo de “presente”) devora o passado.
Meu encontro com essa casa que ia (que vai) morrer me comoveu e ocupou o meu dia. Não foi a primeira vez que vi casas morrerem. Já vi minha própria casa morrer – a casa onde passei minha infância e minha juventude – levando consigo objetos que eu não tive nenhuma condição emocional de resgatar. Vi morrer também a casa de meus avós. Vi morrer a casa da minha bisavó, em Icoaraci. Vi morrer a casa, o sobrado, de minha tataravó, na velha praia do Bispo, no Mosqueiro.
Sei que casas morrem, tal como tudo morre: passados, famílias, amizades, boas intenções, devoções, afetos sinceros e até amores verdadeiros. Tudo morre. Tudo morre nesta vaga vida na qual mais coisas há que morrem do que há coisas que sobrevivam. Também sei que cidades morrem. Belém, por exemplo, morre o tempo todo. Belém, aliás, deve ser uma das cidades que mais morrem na história das cidades e, nesse contexto, casas morrerem, sistematicamente, dentro de Belém.
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