Publicado em: 21 de novembro de 2025
Por Benilton Cruz
A história da Ayahuasca é a prova de que temos ainda muito a aprender sobre a parte mais verde do planeta.
Diz um relato do Mestre Gabriel, o fundador da União do Vegetal, um dos núcleos religiosos em torno dessa bebida sagrada, que Ayahuasca – ou melhor Oasca, segundo ele – era uma conselheira de um rei inca, encantado com a sabedoria da nobre senhora, e que quando ela morreu, esse mesmo rei viu nascer uma planta em cima do túmulo de sua conselheira.
Chamado os seus melhores marechais para provar do chá feito das folhas desse arbusto, um deles morrera logo após ingerir a bebida. O nome desse marechal era Tiauaco que foi sepultado ao lado do mausoléu da Ayahuasca.
Passado um tempo, um cipó misterioso grelou em cima do túmulo do valente marechal e se entrelaçou com as verdes folhas do arbusto nascido sobre os restos mortais da conselheira, da mulher sábia que se transformou em uma Rainha espiritual para aquele líder e aquele povo.
O rei, então, resolveu unir em um mesmo chá o cipó e a planta: o resultado foi o nascimento da famosa bebida, o vinho das almas, o vegetal, o Daime, na versão do Mestre Irineu, outro pioneiro na disseminação dessa bebida sagrada a partir do Acre, parte ocidental da Amazônia brasileira.
Em primeiro lugar a Ayuahasca não é um chá que se bebe quente e dando “beijos” na borda de uma xícara. É uma bebida de gosto difícil de descrever, uma vez que as suas características fogem ao nosso paladar: imaginem um líquido viscoso e de cor de um marrom-alaranjado, cor da terra.
O poder do vegetal começa, de cara, por via dessas aspectos. É amargo, viscoso, intragável, e parece carregar todo o gosto de uma estranha clorofila condensada de tudo aquilo que se possa sentir dos vegetais – acrescentado de um verde sabor da espiritualidade da Amazônia andina e florestal.
E o efeito da bebida é uma viagem astral. As luzes se abrem e um caminho espiritual próprio é percorrido. Mandalas iluminadas limpam as vaidades e orgulhos, e em alguns casos o efeito emético é notado: vontade de urinar e defecar, a “limpeza visceral” toma conta do daimista, estado de purificação que pode se estender para lágrimas, água a escorrer pelo nariz, e a vontade de vomitar.
É algo novo que pede para entrar e coisas velhas e doentias que têm que sair, ou melhor: nada de bom pode entrar se o mal não sair. Há uma sensação de queda da pressão sanguínea – a “Força” te deixa “fraco” e é a hora das mirações.
Vais conhecer a verdade. A tua verdade. E como diz o canto, em mais uma oração-cantada da tradição amazônica: “Dai-me a foça, dai-me a luz…” daí o nome: Daime.
A Ayuahasca é reencarnacionista, ou seja, ela te ensina que tens uma longa trajetória de alma, vida eterna em dimensões que precisamos reconhecer e reviver para conhecemos quem realmente somos. E aqui cada um refaz o seu caminho e expande uma consciência adormecida.
A Ayuahusca nos ensina a cair do pedestal do ego e a sermos mais humildes, e lembrarmos que este mundo ainda tem perguntas – diante de um tempo no qual todos têm as respostas prontas.
Eu costumo dizer que a linha do Mestre Irineu, e seus hinos bailáveis cantados ao longo do ritual com a bebida, nos brinda com uma Poética da Luz, e a do Mestre Gabriel nos alimenta de uma Poética do Equilíbrio, enquanto que a do mestre Germano Guilherme nos doa uma exuberante Poética do Êxtase.
E essas três linhas conjugam, portanto, uma religião estritamente poética, amazônica, musical e corporal da dança que se harmoniza com o sentido universal da espiritualidade (todos os deuses transitam nessa viagem astral e todos podem ser visíveis), por isso, todas as religiões são bem-vindas no recinto do Daime ou do Vegetal, algo que lembra a Maçonaria que acolhe a todos que acreditam em uma fonote única e criadora.
Hoje, vou tratar apenas da linha do Mestre Irineu Serra e de cara, observei que o ritual daimista se assemelha ao rito Escocês Antigo e Aceito em algumas passagens – algo que, dada a sua profundidade, vou tratar em outro momento.
O chá, na tradição daimista do Mestre Irineu é mais diluíldo, menos “mel” como a Ayahuasca, mais amarelada, como se fosse para se voltar a tomar a bebida em outro momento, em um “ciclo”, um ritual, no qual no memonteo que você entra na fila, não pode voltar atrás, algo também comum no rito Escocês Antigo e Aceito.
Depois de ingerido, é hora de meditar e aos poucos o efeito se faz notar: o chá nos ajuda a enxergar que há outros mundos e nós somos apenas um deles, talvez o mais enfraquecido pelo egoísmo e outras causas de sofrimentos morais e físicos. E se você cantar, você se sente nas alturas, no ritmo, na voz através de notas altas, agudas:
EU CANTO NAS ALTURAS
(Mestre Irineu)
Eu canto nas alturas,
E a minha voz é retinida
Porque eu sou filho de Deus
E tenho a minha Mãe querida.
(bis)
A minha Mãe que me ensinou
A minha Mãe que me mandou
Eu sou filho de Vós
Eu devo ter Amor
(bis)
Com Amor tudo é Verdade
Com Amor tudo é certeza
Eu vivo neste mundo
Sou dono da riqueza
(bis)
A minha Mãe é a lua cheia
É a estrela que me guia
Estando bem perto de mim
Junto a mim é prenda minha
(bis)
A riqueza todos têm
Mas é preciso compreender
Não é com fingimento
Todos querem merecer
(bis)
Na tradição daimista, só podemos repetir duas vezes a estrofe e aceitar a gramática como foi recebida, nada de ajustes ortográficos. A frequência tem que ser respeitada.
O canto do mestre Irineu Serra é um exemplo do que eu vou chamar de a Poética da Luz.
Observem que a palavra “retinida” é a mesma usada pelos pescadores quando estendem a rede e ela tem que ficar em uma posição tal que não fique nem muito tesa e nem muito folgada – a metáfora do pescador lembra de imediato o sincretismo com o Cristianismo.
Retinida é a exatidão. Tempo de capturar o peixe ao sabor das correntezas, no exemplo perfeito de como a Palavra é o Verbo que ensina a capturar valores sagrados ao espírito. Assim, é a Luz e o Verbo, união do Amor do Pai e da Mãe divinos, no caso daimista, a Rainha e o Marechal.
No próximo texto, vou falar novamente sobre esta religião da floresta.





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