Publicado em: 8 de junho de 2025
Certamente, você ainda era uma criança, quando ouviu uma piada, da qual todos riam, menos você, porque você era o alvo do enredo da piada.
É muito provável que você já tenha estado em uma roda de amigos onde alguém, entretendo o grupo, contava alguma história ridicularizando pessoas da sua cor de pele, ou da cor de pele de alguém que você ama.
Com certeza você já presenciou, durante uma reunião de família, na escola ou na internet, piadas sexistas envolvendo mulheres, idosos, pessoas com deficiência, homossexuais e outras minorias.
Você já deve ter assistido a algum programa de humor no qual a origem social ou a região geográfica de origem, caricaturadas e estigmatizadas, ditaram o ritmo do humor chulo.
Quem foi adolescente nos anos 80, deve lembrar do tom do humor na escola e nos programas humorísticos de TV. Eu consigo lembrar de alguns, e tenho certeza de que não seriam viáveis hoje.
Algumas décadas se passaram e algumas mudanças têm colocado na ordem do dia o debate sobre o limite do humor, sobretudo para os profissionais do humor, no exercício de suas profissões e do direito fundamental à liberdade de expressão, que também é um valor fundamental do nosso estado de direito.
A despeito de tudo que temos evoluído na defesa das minorias, a partir das mudanças de paradigma civilizatório das últimas décadas, o humor ainda figura como uma das vias de expressão de preconceitos, estigmas, desrespeito e, em grau elevado, de atos ilícitos.
No dia 03 de junho, a imprensa nacional noticiou que o humorista Léo Lins foi condenado a oito anos, três meses e nove dias de reclusão em regime fechado, por propagar conteúdo contra minorias e grupos vulneráveis. A decisão judicial, publicada em 30 de maio de 2025, responde ao pedido formulado pelo MPF de São Paulo, que ofereceu denúncia contra o humorista. A sentença também condenou o réu ao pagamento de multa e de R$ 303.600,00, a título de danos morais coletivos.
Em um dos vídeos publicados pelo réu, parte de seu stand-up comedy intitulado “Léo Lins PERTURBADOR“, gravado em 2022, o humorista fazia declarações ofensivas contra negros, idosos, obesos, pessoas com HIV, homossexuais, indígenas, nordestinos, evangélicos, judeus, e pessoas com deficiência. O vídeo, por determinação judicial, foi retirado do ar, não antes de obter mais de 3 milhões de visualizações. Foi esse material que subsidiou a denúncia do MPF.
Na ação, o MPF alegou que o humorista distribuiu vídeos retratando atos ofensivos e degradantes contra grupos vulneráveis e minoritários, implicando crimes de ódio, preconceito e discriminação.
Diante dos fatos alegados, o MPF pediu ao judiciário: a imposição da proibição de transmitir, publicar ou distribuir arquivos com conteúdo depreciativo ou humilhante contra grupos ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável; a proibição de realizar em suas apresentações piadas com conteúdo depreciativo ou humilhante; a determinação da retirarada do ar de qualquer publicação com conteúdo depreciativo ou humilhante contra grupos ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável; o deferimento de providências cautelares e a condenação nos crimes capitulados na denúncia.
Para compreender melhor o enredo da condenação do humorista, li a sentença prolatada no processo de n° 5003889-93.2024.4.03.6181, que tramita na 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, da lavra da magistrada Bárbara de Lima Iseppi, e assisti ao conteúdo do vídeo que fundamentou materialmente a denúncia do MPF.
Ressalvados os detalhes processuais, a sentença concluiu que o réu praticou as condutas típicas capituladas no Art. 20 da lei 7.716/89: “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, e no art. 88, parágrafo 2°, da lei 13.146/2015.
A sentença condenatória considerou, para fixação da dosimetria da pena, que a esquete de humor ofendeu valores e interesses fundamentais de pelo menos 10 grupos vulneráveis, caracterizando o dano moral coletivo pela divulgação do material em meio de comunicação (plataforma de vídeo), que alcançou milhões de pessoas.
No percurso da sentença, a magistrada compilou trechos coletados da esquete de humor que não reproduzirei aqui para não amplificar a ofensividade desse conteúdo. O teor das “piadas” convence de que houve grave ofensa à moralidade pública e lesão a valores fundamentais da sociedade de maneira injusta e além do tolerável.
A liberdade de expressão
A liberdade de expressão é um direito fundamental consagrado na Constituição Federal de 1988. É uma das pedras angulares que sustentam as sociedades democráticas e pluralistas. No entanto, o exercício desse direito deve ser sopesado com os demais direitos fundamentais. No artigo 221, IV, da Constituição Federal, esse princípio é novamente consagrado, no exercício do direito à comunicação social, desde que com respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Não caracteriza censura a intervenção jurisdicional quando para a defesa de interesses fundamentais da nossa comunidade política, defendidos na própria constituição. Tenho observado muitos debates públicos em torno da liberdade de expressão nas mídias sociais no Brasil, como se este fosse um direito absoluto. Inclusive neste caso comentado, observei a reação da comunidade virtual em defesa do humorista e condenando a censura. Algumas reações, desvirtuando o próprio conteúdo da liberdade de expressão, veiculam fotografias da magistrada que atuou no processo de forma pejorativa e ofensiva. O ataque misógino à pessoa reforça o abuso no exercício desse direito.
Não está fácil fazer humor no Brasil, exclamam alguns defensores do comediante. Ainda bem! Essa dificuldade deverá elevar a qualidade, sutileza e tom do humor!
É um desafio construir uma comunidade política e plural, pautada em princípios coletivos e no respeito para com todos os grupos.
Certa vez o estilista e político, já falecido, Clodovil Hernandes, disse que humor é o que faz rir com as pessoas, não o que faz rir das pessoas.
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