Publicado em: 29 de junho de 2025
Trago aqui algumas notas e excertos, sem nenhuma preocupação metodológica, sobre a leitura da obra O Fogo e o Relato: Ensaio Sobre Criação, Escrita, Arte e Livros. Os ensaios que compõem a obra de Giorgio Agamben são exercícios de leitura e compreensão da arte presente na obra de autores como Dante Alighieri, Franz Kafka, Paul Celan, Giorgio Caproni, Giorgio Manganelli, Pier Paolo Pasolini, Cristina Campo, Simone Weil, Aristóteles, Espinosa, Walter Benjamin, Roland Barthes, Heidegger, Hölderlin, Michel Foucault, Dostoiévski e a Bíblia. Neste exercício de erudição de Agamben, a arte e o pensamento são defendidos como necessários à sobrevivência da espécie humana.
Os dez ensaios reunidos na obra são textos de apoio para conferências realizadas entre 2010 e 2013, em eventos e espaços diversos: da Academia de Arquitetura de Mendrisio, na Suíça, a uma mesa-redonda durante a feira de pequenas e médias editoras de Roma. Logo nas primeiras páginas, para justificar o título da obra, Agamben relata que:
“Quando Baal Schem, fundador do hassidismo, tinha uma tarefa difícil pela frente, ia a certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, e o que ele queria se realizava. Quando, uma geração depois, o Maguid de Mesritsch[a] viu-se diante do mesmo problema, foi ao mesmo lugar do bosque e disse: Já não sabemos acender o fogo, mas podemos proferir as preces, e tudo aconteceu segundo seus desejos. Passada mais uma geração, o Rabi Moshe Leib de Sassov viu-se na mesma situação, foi ao bosque e disse: Já não sabemos acender o fogo, nem sabemos as preces, mas conhecemos o local no bosque, e isso deve ser suficiente; e, de fato, foi suficiente. Mas, passada outra geração, o Rabi Israel de Rijn, precisando enfrentar a mesma dificuldade, ficou em seu palácio, sentado em sua poltrona dourada, e disse: Já não sabemos acender o fogo, não somos capazes de declamar as preces, nem conhecemos o local do bosque, mas podemos narrar a história de tudo isso. E, mais uma vez, isso foi suficiente” (p. 18).
Essa anedota é um trecho da obra Gershom Scholem: Le grandi correnti della mistica ebraica. Agamben utiliza a anedota como uma alegoria para a literatura e para falar sobre a literatura como memória coletiva, afirmando que a humanidade, no extenso curso da sua história, afasta-se cada vez mais das fontes do mistério e perde, pouco a pouco, a lembrança daquilo que a tradição lhe ensinara sobre o fogo, o lugar e a fórmula. Nesse processo, a literatura é o que nos permite ainda narrar histórias.
Na anedota, Agamben enxerga o fogo, o lugar e a fórmula neste sentido:
“se for entendido simplesmente no sentido de que a perda do fogo, do lugar e da fórmula é, de qualquer modo, um progresso e que o fruto desse progresso – a secularização – é a libertação do relato de suas fontes míticas e a constituição da literatura – que se tornou autônoma e adulta – numa esfera separada, a cultura, então esse deve ser suficiente torna-se deveras enigmático. Deve ser suficiente, mas para quê? Dá para acreditar que seria possível satisfazer-se com um relato que perdeu a relação com o fogo?” (p. 112).
Agamben diz que, no percurso literário, o leitor, ao acompanhar o enredo de situações e eventos que o romance tece na construção de sua personagem, participa de certa forma da sorte desta e introduz de algum modo sua própria existência na esfera do mistério. Um mistério, livre de conteúdo mítico e de qualquer perspectiva religiosa:
“podendo, por isso, ser de certa forma desesperado, como acontece com Isabel Archer no romance de Henry James, ou com Anna Kariênina; podendo até mostrar uma vida que perdeu completamente seu mistério, como no caso de Emma Bovary” (p. 30).
Agamben evoca Os Mistérios de Elêusis, também conhecidos como Mistérios Eleusinos, que eram ritos de iniciação ao culto das deusas agrícolas Deméter e Perséfone, que se celebravam em Elêusis, localidade da Grécia próxima de Atenas, para falar sobre a construção do enredo do romance. Precária é a literatura, mas entendendo precário como algo que antecede a uma prece:
“praex, pedido verbal, diferente de quaestio, pedido que se faz com todos os meios possíveis, inclusive os violentos, e é por isso frágil e aventuroso” (p. 32). Por isto a literatura é precária e aventurosa, mantendo o contato com o mistério. E assim, como o iniciado em Elêusis, o artista avança “na escuridão e na penumbra, por uma trilha suspensa entre deuses ínferos e súperos, entre esquecimento e recordação” (p. 32).
Na construção do texto literário, há, porém, um laço com o mistério, que lhe permite medir a cada vez a distância até o fogo. Entre o mistério e o fogo há a língua. Por isso, escrever tem o mesmo significado que contemplar a língua, e quem não vê e não ama sua língua, quem não sabe soletrar sua tênue elegia nem perceber seu hino flébil, não é escritor, pois “o fogo e o relato, o mistério e a história são dois elementos indispensáveis da literatura” (p. 34).
No capítulo sobre o mysterium burocraticum, Agamben analisa o caso do julgamento de Eichman, em Jerusalém, relatado por Arendt. É a esse ser, Eichmann, a esse herói sem mais tarefa atribuível, que está reservada a prova mais árdua, o mysterium burocraticum da culpa e da pena. Assim como Eichmann, o homem comum reconhece no processo seu feroz momento de glória, o único, de qualquer forma, em que sua existência adquire um significado que parece transcendê-lo. A narrativa de Eichmann é tecida como uma narrativa jurídico-literária, entre o nexo dos fatos a ele atribuído, ocorrem culpa e expiação/pena. Esse vínculo é estabelecido pela linguagem.
O mysterium burocraticum é um substrato linguístico da narrativa mística do direito, que tece o enredo da culpa, em um nexo de causalidade artificialmente construído pela linguagem. O processo segue em atos, e é nessa narrativa que o humano se corporifica, pelo artifício da linguagem. É papel do réu, na antítese dos atores do processo, alegar inocência; declarar-se, tal como Eichmann, pronto a enforcar-se em público e, todavia, inocente perante a lei. Eichmann se proclamou inocente em todos os termos da acusação. O mistério da linguagem e da culpa é, na verdade, o mistério de ser e ainda não ser humano, pois: “o Juízo, em que ele é ao mesmo tempo juiz e réu, não cessará de ser atualizado, repetirá continuamente seu non liquet” (p. 38).
Agamben traz para sua a análise as narrativas bíblicas. Avalia o estilo de diálogo dos Evangelhos, nos quais Jesus elabora parábolas. O autor diz que desse hábito do Senhor derivou o verbo italiano “parlare” [falar], desconhecido no latim clássico: “parabolare, isto é, falar como Jesus, que “sem parábolas nada dizia” (“choris paraboles ouden elalei”, Mateus, 13,34)” (p. 43).
O autor localiza a parábola no “discurso do Reino” (logos tes basileias), no livro de Mateus, 13,3-52. São oito parábolas que se sucedem para explicar aos apóstolos e à multidão (ochlos, a “massa”) de que forma se deve entender o Reino dos céus. A parábola é o formato dos enunciados de Cristo por excelência. Não se sabe ao certo porque Cristo elegeu esse formato. Em Mateus, 13,10-17, aos apóstolos, que lhe perguntam por que fala para a massa por parábolas, Jesus responde:
“Porque enquanto a vós é dado conhecer os mistérios do Reino, àqueles não foi dado. De fato àquele que tem se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem até aquilo que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo por parábolas, porque os que veem não veem, e os que ouvem não ouvem nem compreendem.” (p. 44).
Parece que a razão da parábola não é o formato linguístico, mas a função didático-pedagógica da linguagem. As parábolas, de acordo com um modelo retórico cultivado na Antiguidade, são um discurso codificado para impedir que seja compreendido por quem não é o destinatário da mensagem: eis o motivo do código. Agamben diz que provavelmente as próprias explicações dadas por Jesus sobre seu modo de falar por parábolas sejam uma parábola (vide a parábola do reino). Agamben diz que a parábola do reino é a metalinguagem pela qual a parábola do semeador é uma parábola sobre a parábola, e o acesso ao Reino é equiparado à compreensão da parábola, pois “Parabolar é simplesmente falar: Marana tha, Senhor, venha” (p. 44).
O terceiro artigo que compõe a obra citada é sobre o ato de criação. O texto refere a uma conferência que Gilles Deleuze proferiu em Paris em março de 1987. Nessa conferência, o filósofo definiu o ato de criação como um “ato de resistência” à morte e ao “paradigma da informação”. Agamben reflete sobre o exercício do poder naquilo que Deleuze chama de “sociedades de controle”, que são diferentes do que Foucault chamava de sociedades de disciplina. Deleuze diz que, na arte, cada ato de criação é resistência a algo, como a música de Bach, por exemplo, que resiste à separação entre o sagrado e o profano.
Deleuze prefere usar o termo ato poético ao termo ato de criação, no sentido de poiein, produzir. Então, Agamben fala sobre o conceito de potência, tratado por Aristóteles no livro IX, da Metafísica, e no livro II do De Anima. Não qualquer potência, mas a potência de quem domina a arte: hexis, derivado de echo “ter” uma habilidade. Esse é o sentido aristotélico de potência. Potência porque esta é possibilidade ou não de exercício.
O ato de criação não é uma simples passagem da potência ao ato, mas também de negação do ato. O artista realiza o ato, ou resiste ao ato. Ele é quem decide se realiza ou se nega o ato. Agamben cita como exemplo o pianista, quando executa uma peça ao piano. Então, Agamben cita um verso de Dante, que resumiu em um verso o caráter anfíbio da criação poética: “o artista / a quem, no hábito d’arte, treme a mão” (p. 53). Agamben também recupera o sentido da potência de agir, de Espinosa, para quem a essência de cada coisa como o desejo, o conatus, de perseverar no próprio ser: uma pequena resistência, semelhante ao que apontou no ato de criação artística.
Agamben reflete sobre o fenômeno do vórtex, como movimento. Cita Walter Benjamin, que comparou a origem a um vórtice. Para Benjamin, em Origem do drama trágico alemão:
“A origem [Ursprung] insere-se no fluxo do devir como um vórtice que arrasta no seu ritmo o material de proveniência [Entstehung]. […] Por um lado, o originário quer ser conhecido como restauração e reconstituição e, por outro, exatamente por isso, como algo incompleto e inacabado. Em todo o fenômeno de origem determina-se a figura através da qual uma ideia se confronta permanentemente com o mundo histórico, até ele atingir a completude na totalidade da sua história. Pois a origem não emerge da esfera dos fatos, mas refere-se à sua pré- e pós-história. […] A categoria da origem não é, portanto, como quer Cohen, uma categoria puramente lógica, mas histórica.” (p. 75).
O autor reflete sobre a dificuldade de ler. Não da leitura e dos riscos que ela comporta, mas da dificuldade de ler, que é a ilegibilidade.
O autor se refere aos momentos em que gostaríamos de ler, mas não conseguimos, e nos obstinamos a folhear as páginas de um livro, mas ele nos cai literalmente das mãos. Agamben fala de muitas impossibilidades para a incapacidade de ler. Inclusive do analfabetismo.
Agamben também reflete em “Do livro à tela. O antes e o depois do livro”(p. 96), sobre o percurso histórico do livro físico, no processo de confecção da obra, citando Roland Barthes e sua concepção do processo criativo do livro.
Agamben lembra que o livro, como o conhecemos, aparece na Europa entre o século IV e V da era cristã. É esse o momento em que o codex – termo técnico para livro em latim – substitui o volumen e o rolo, que eram a forma normal do livro na Antiguidade Clássica. Este processo foi uma verdadeira revolução. Recorda da passagem volumen – que era um rolo de papiro, que o leitor desenrolava com a mão direita, segurando na esquerda. Agamben rememora a história do livro e questiona: “o que acontece hoje, quando o livro e a página parecem ter cedido lugar aos instrumentos informáticos?” (p.113).
Agamben recorda que, “ etimologicamente, a palavra “livro” vem de um termo latino que na origem significa “madeira, cortiça”. Em grego, o termo para “matéria” é hyle, que significa, precisamente, “madeira, floresta” – ou, como traduzirão os latinos: silva ou matéria, que é o termo para a madeira como material de construção, distinto de lignum, que é a lenha, madeira para queimar”. A passagem do livro físico, cuja mecânica da materialidade física, do folhear das páginas, cede espaço para a leitura em telas.
No ensaio opus alchymicum, Agamben afirma que a criação literária pode, aliás, deve caminhar para um processo de autotransformação e que a escrita, sobretudo a escrita poética, transforma o autor em vidente e o encaminha para a ascese, exemplificando este processo na obra de Arthur Rimbaud e o fascínio que a obra exerce sobre seus leitores.
O autor fala sobre a conjunção íntima entre a obra literária e o trabalho sobre o autor e sobre o leitor, em situações extremas que podem conduzir à busca espiritual. A busca pela perfeição é dupla: no plano formal e no plano substancial. O trabalho sobre si e a produção de uma obra apresentam-se, por excelência, como consubstanciais e indivisíveis: é o que Agamben chama de alquimia. Ele analisa o processo da alquimia.
Agamben afirma que o “opus alchymicum implica que a transformação dos metais ocorra pari passu com a transformação do sujeito” (p. 128). A busca e a produção da pedra filosofal coincidem com a criação ou recriação espiritual do sujeito que as realiza. Por um lado, os alquimistas afirmam expressamente que sua obra é uma operação material que se resolve na transmutação dos metais; estes, passando por uma série de fases ou estágios (denominados, pelas cores que assumem, como nigredo, albedo, citrinitas e rubedo), e chegam à perfeição no ouro resultante.
Agamben diz que uma das mais antigas obras alquímicas, que a tradição atribui a Demócrito, Physikà kai Mystikà, contempla tanto o sentido moral quanto o sentido material. Expressa paradigmaticamente essa interpenetração dos dois planos da “grande obra”, que, conforme os adeptos sempre declararam, devia ser entendida tam ethice quam physice, tanto no sentido moral quanto no material. Por isso, entre os historiadores da ciência – como Berthelot e Von Lippmann, que consideravam a alquimia simplesmente uma antecipação, ainda que obscura e embrionária, da química moderna – e os esotéricos – como Evola e Fulcanelli, que viam nos textos alquímicos nada mais que uma transcrição codificada de uma experiência iniciática –, a melhor atitude foi a de estudiosos como Eliade e Jung, que enfatizaram a indivisibilidade dos dois aspectos do opus. A alquimia, assim, apresenta-se para Eliade como a projeção na matéria de uma experiência mística. Embora não haja dúvida de que as operações alquímicas eram operações reais com metais:
“os alquimistas projetavam na matéria a função iniciática do sofrimento […]. Em seu laboratório, o alquimista operava sobre si mesmo, sobre sua vida psicofísica assim como sobre sua experiência moral e espiritual”. Assim como a matéria dos metais morre e se regenera, também a alma do alquimista perece e renasce, e a produção do ouro coincide com a[…]” (p. 129).
Ainda sobre o processo alquímico, Agamben diz que a lectio facilior[e] [lição mais fácil] é que aqui se trate simplesmente de uma escrita criptográfica. Neste sentido, só os que possuem os códigos podem lê-la e decifrá-la. Nesse processo, Agamben identifica a coincidência entre os dois planos, entre a criação de obras e a recriação do autor, que:
“É aqui tão perfeita que, ao contemplarmos um quadro de Klee, não nos perguntamos como o trabalho com a obra e o trabalho sobre si podem chegar a ser uma unidade, mas nos perguntamos como é possível sequer pensar em sua separação” (p. 139).
Esse excerto é apenas um dos exemplos do duplo processo que ocorre no trabalho sobe a obra e no trabalho sobre si. Por fim, esta obra de Agamben é um exercício analítico sobre a arte, sobretudo a literatura, sobre o livro e o processo de criação, passando pelos principais autores que se dedicaram a refletir sobre a arte como processo criativo da linguagem e de si mesmos: do sujeito personificado em linguagem.
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