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Certo, faz tempo que eu não venho escrever aqui. E isso por causa da COP. Alguém até me disse que esperava minhas sínteses sobre a COP, mas fazem 30 dias que estou falando sobre a COP, tanto na COP como nos fóruns da COP e, pelo que vejo, todo mundo já falou tudo o que eu poderia dizer sore ela. Aliás, não aguento mais falar sobre a COP. Não serei repetitivo e, por isso, vou-lhes contar sobre uma coisa que faz a COP transcender. Vou lhes falar sobre meu doguinho heterotop na COP.

O nome dele é Café. É um Spitzer alemão, raça vulgarmente (em seu caso, certamente sem seu consentimento) chamada de Lulu da Pomerânia. Tenho certeza absolta de ele prefere ser reconhecido como Spitzer alemão do que como Lulu da Pomerânia. Meu cachorro seria tudo, menos Lulu. Os instintos masculinos deles são elevados e ele é quase um heterotop. Um heterodog. Um heterodogtop.

Na verdade, mesmo castrado, ele é um heterotopdog. As circunstâncias, do ponto de vista humano, beiram o ridículo, mas o são.

Reproduzo as mensagens no grupo família:

Fábio: Gabriela, que horas chega teu voo, preciso de ajuda.

Gabriela: 15h30. O que foi?

Fabio: Trouxe os cachorros pra casa e o Café tá fazendo merda. Ele se apaixonou pela hóspede inglesa. Tua mãe está estressada.

Contextualização: O Café – o Spitzer alemão – tem um temperamento altivo, machista e adjudicativo. É um cachorro heterotop, mesmo sendo castrado. Tem o péssimo habito de roubar roupas femininas e esconder debaixo da nossa cama, que ele considera seu território privativo. Já encontramos lá sutiãs, calcinhas e meias, sempre roupas de mulheres. Nenhuma de seres humanos de gênero masculino. Sutiãs e calcinhas, aos montes, das mulheres da casa. E nenhuma cueca, nenhuma meia, nada que pertencesse ao sexo masculino.

Gabriela: Ai meu Deus, o que ele fez?

Fábio: Ele está, faz três horas, parado em pé em frente ao quarto da hóspede inglesa, querendo entrar no quarto. Ele se apaixonou por ela.

Contextualização: A hóspede é uma cidadã britânica, gentilíssima, simpaticíssima, que estávamos recebendo durante a COP. Ela fez um carinho no Café e o Café, bastando isso, se apaixonou por ela. Ela veio para a COP30 e está participando de painéis muito sérios a respeito das questões referentes aos recursos aquáticos, está discutindo o futuro do planeta. Estamos recebendo-a em casa, no quarto “Genious at Work” (esse é o nome do quarto porque tem uma plaquinha lá, dizendo isso, afixada quando meu filho o ocupava, durante seu ensino médio). É o quarto que fica no meio do corredor.

Um outro hóspede está no quarto “May the force be with you”. É o quarto do final do corredor, que tem uma plaquinha com esses dizeres, no que promete uma experiência mais aprofundada – senão na autoestima, certamente na cultura geek.

Porém, como o hóspede, nesse quarto, é do gênero masculino, o Café não demonstrou nenhum interesse por ele. Aliás, ignorou-o completamente.

Fábio para Gabriela, em privado, no WhatsApp: Ele fez xixi quatro vezes em frente à porta da hóspede inglesa. Todo mundo aqui está limpando, para evitar esses constrangimentos; mas, por favor, leva esse cachorro biruta pra tua casa. Não tem condições…. eu vou te pegar no aeroporto já levando ele.

Marina, no grupo família do WhatsApp: Gente, eu não aguento mais. Eu vou matar esse cachorro.

Pedro, no grupo família do WhatsApp: Pessoal, se acalmem, o cachorro tem instintos naturais.

Gabriela, no grupo família do WhatsApp: Mãe, o que foi que tu viste?

Marina, no grupo família do WhatsApp: O Café apaixonou pela hóspede. Ele está arranhando a porta do quarto dela, gemendo, uivando.

Pedro, no grupo família do WhatsApp: Isso é muito constrangedor, eu falei que não era para vocês receberem hóspedes em casa, na COP.

Marina, no grupo família do WhatsApp: Constrangedor é o Café!

Gabriela, no grupo família do WhatsApp: É impressionante a autoestima do Café… ele se acha um conquistador.

Fábio, no grupo família do WhatsApp: O Café é um heterodogtop…

Gabriela, no grupo família do WhatsApp: E olha que ele é castrado.

E a coisa agravou. Horas depois, toda a família (e também a hóspede inglesa) estando fora de casa, todos envolvidos na COP, recebo uma mensagem WhastsApp da dona Antônia, a querida dona Antônia, que nos ajuda a cuidar da casa.

Dona Antônia, em mensagem de áudio para o Fábio: Seu Fábio, ai meu Deus, o Café conseguiu entrar no quarto da hóspede inglesa, pegou o sutiã dela e saiu correndo. Levou para debaixo da cama de vocês. O que eu faço agora, seu Fábio?

A dona Antônia até correu, mas o Café foi mais rápido e, rosnando, literalmente se atirou para debaixo da cama do nosso quarto, seu território. Levando consigo o sutiã da hóspede inglesa.

Retorno para casa. Abandono a discussão sobre as mudanças climáticas no NAEA, na qual estava participando. O caso é grave. Sinto-me constrangido. Iniciamos uma operação de resgate. Eu, dona Antônia e a Olívia (a antiga babá da Marina, que está passando uma temporada em casa) nos lançamos na operação de recuperar a peça de roupa roubada pelo Café. Levantamos a cama. Ele protesta, rosna. Fica revoltado, rebelado. Ameaça morder quem chegar perto da referida peça de roupa, protegida entre suas duas patas. Depois se atraca no sutiã da hóspede inglesa e, rápido como um raio, corre para outro esconderijo – levando-o.

Marina, em mensagem de voz no grupo família do WhatsApp: Eu ainda não acredito que isso está acontecendo. Quando chegar em casa quero ver tudo isso resolvido! Será que vou ter que sair do painel da COP por causa disso?

Gabriela, no grupo família do WhatsApp: Que tal? Deem notícias. Conseguiram pegar a roupa da mulher?

Pedro (meia hora depois), no grupo família do WhatsApp: Pelo silêncio, acho que eles não conseguiram ainda.

……………………………..

Dona Antônia, em mensagem WhatsApp para a Gabriela: Gabriela, descobriram que ele tem outro esconderijo.

Fábio, em mensagem de voz, no grupo WhatsApp da família: Descobrimos que ele tem outro esconderijo, na gaveta de meias do Pedro. Ele levou o sutiã da inglesa para lá e está enfurecido.

Pedro, no grupo WhatsApp da família: Ai não…

Marina, em mensagem de voz no grupo família do WhatsApp: Vocês sabem que eu nunca quis ter bichos em casa. Dois cachorros, três gatos, três preás, o Frango Frito (Frango Frito é o nome do periquito) e aquela fdp daquela planta carnívora que vocês têm que criar carapanã para ela se alimentar, égua, é demais para mim. Vocês vão resolver isso sozinhos!

Pedro: Quem está em casa, agora, e que horas a hóspede inglesa chega?

Fábio: Agora só eu estou aqui. Tua mãe já chegou, mas se trancou no quarto. A hóspede inglesa pode chegar a qualquer momento.

Pedro: Pai, te concentra: pega o sutiã da inglesa que o Café roubou, lava ele direitinho e bota de novo nas coisas dela. Ela não vai perceber.

Fabio (pensando que deveria estar nos eventos da COP, discutindo o aquecimento global): Mas como eu vou dizer para ela que isso aconteceu? Como vou explicar que esse cachorro é biruta? Com que cara eu vou lavar o sutiã dessa dela e devolvê-lo. Eu posso até lavar o sutiã, isto é, se eu superar meus escrúpulos, mas o sutiã vai estar molhado, não é?

Fábio, falando em direct, pelo WhatsApp, para Marina (trancada no quarto): Amor, isso é muito constrangedor. Temos que lavar o sutiã da hóspede inglesa e explicar a ela o que aconteceu. Isso é realmente muito constrangedor.

Marina, falando por WhatsApp para o Fábio em mensagem de áudio (exausta): Não quero saber. Resolve. Vocês educaram esses cachorros como se eles fossem gente, quase cidadãos da Constituição de 88. Agora eu não quero mais saber, resolvam como puderem.

Fábio, no grupo família do WhatsApp: Gente, peguei o sutiã, lavei e o sequei com o secador de cabelos. Botei de volta no lugar. A dona Antônia me ajudou. Espero que a hóspede inglesa não perceba. Acho melhor fingirmos que nada aconteceu.

Outra mensagem do Fábio, no grupo família: Ah, ralhei com o Café e botei ele de castigo.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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