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Caro leitor, devo lembrá-lo que para compreender esse crime será preciso ler a edição passada. Feita esta observação, vamos aos fatos que conduziram ao paroxismo da fúria do caso Papin.

Alguns elementos chamaram atenção nesse complexo homicídio. Dois anos antes, Clèmence enviara uma carta com um conteúdo delirante às filhas, na qual dizia “têm inveja de vocês e de mim”, insinuando que estavam perseguindo as filhas para indiretamente atingi-la. Em outro parágrafo da carta, afirmava: “eles vão derrubar vocês para serem donos de vocês e fazerem o que quiserem com vocês. A gente pensa que tem amigos e são grandes inimigos”. Na palavra “eles”, Clèmence coloca “uma pulga atrás da orelha” nas filhas. Um sujeito que pode a qualquer instante surgir e atacá-las.

Quando as irmãs começaram a trabalhar para os Lancelin, ficou acertado que a patroa daria as ordens a Christine e esta as transmitiria à Léa. A distância entre patrões e empregadas era rigorosamente mantida e esses papéis bem definidos deixavam-nas confortáveis, pois, além de manter sua privacidade a salvo, não interferia na qualidade das acomodações e nem da alimentação, sendo tudo excelente, permitindo que continuassem mantendo uma vida altiva e decente. Ademais, por serem educadas e polidas, eram consideradas modelo de empregadas.

Contudo, as criadas das redondezas e as pessoas do bairro não as viam com bons olhos. Pareciam-lhes estranhas e misteriosas. Não tinham namorados, sequer amigas; nunca conversavam com ninguém; não iam a outro lugar que não fosse à missa, elegantemente vestidas; e, sozinhas em seus aposentos, bordavam um enxoval como somente moças muito ricas preparariam para o casamento. Eram inseparáveis. Viviam em um mundo só delas, nisso que chamamos de completude narcísica. Mas, havia um aspecto complicador: odiavam críticas. Principalmente Christine. Então, para não darem motivos a reclamações, faziam tudo o mais perfeito possível. O que não foi suficiente para que um dia a Sra. Lancelin puxasse Léa pela manga e a fizesse ajoelhar para juntar um papel que havia deixado cair. O ódio, que já andava à espreita, instaurou-se.

É preciso esclarecer uma coisa. Não havia uma relação horizontal entre as Papin. Christine era a que ensinava, mandava, protegia, acolhia e mimava. Léa era o lado passivo. Era como se fosse “roupa e o forro, o original e a cópia, a voz e o eco”. E foi como um grande eco a voz das irmãs ao dizerem: “ela que não faça nunca mais, senão…”.

 A separação entre patroa e empregadas era bem definida até o dia que a Sra. Lancelin, indignada com a exploração financeira de Clèmence sobre as filhas, aconselha-as e as convence a não mais entregar seus salários à mãe. Nesse ponto acontece um “racha” na organização mental das Papin. Elas não apenas se afastam irremediável e instantaneamente de Clémence, como passam a ver a Sra. Lancelin como a “mãe”. Porém, a mãe invasiva.

Com o afastamento de Clèmence, as irmãs Papin emudecem do dia para a noite. E, estranhamente, quando os patrões saem de férias, dirigem-se à prefeitura e pedem a emancipação de Léa. O prefeito não consegue entender a razão do pedido, visto que a alegação não fazia sentido. Evocavam uma suposta tentativa de sequestro, mas não explicavam quem e nem o porquê. Confuso diante de tamanha estapafúrdia, o prefeito as encaminha ao comissário que, atônito, escuta delas a acusação de que o prefeito também as persegue. Pasmo com tanta alegação de perseguição, o prefeito avisa o senhor Lancelin do acontecido e aconselha: “se eu fosse o senhor, não ficaria com essas moças. Elas são verdadeiras perseguidas.” Era a tragédia dando mais um sinal. E, novamente, não foi dada a devida importância.

O caldeirão já estava fervendo e derramou quando, no dia anterior à carnificina, um ferro de passar com defeito provoca a queima de um fusível, deixando a casa na escuridão. Tomada pela raiva, a Sra. Lancelin faz o seguinte comentário: “não prestam para nada!”. Nesta frase desafortunada traçou seu trágico destino.

Após presas e colocadas em cárceres separados, nas primeiras semanas dos interrogatórios seus depoimentos eram idênticos, mas, à medida que os dias passavam, o par Christine-Léa foi rompendo seu enlaçamento narcísico. E, enquanto Léa demonstrava crescente apaziguamento, a aproximação da data de “aniversário” do crime provocava em Christine crises terríveis nas quais se batia na parede gritando que lhe dessem Léa. Nos ataques de fúria tentava arrancar os próprios olhos. Tais atos nos remetem a um déjà vu. Podemos pensar numa repetição do crime.

Meses depois, Christine passa a ter alucinações nas quais via Léa pendurada em uma árvore, sem pernas. Isso multiplicou seu desespero diante da ausência da irmã. Sensibilizada com a dor de Christine, que se batia nas paredes e gritava pela irmã, uma carcereira desobedece as instruções, leva Léa até ela e causa um grande alvoroço, pois, ao avistar a irmã, lançou-se sobre ela, sufocando-a até desmaiar. Depois, colocou-a na cama e lhe arrancou a roupa enquanto gritava enlouquecidamente: “diga que sim, diga que sim…” Se não fosse o chefe da carceragem, teria matado a irmã por sufocamento.

O que Christine ensaiou no teatro da sua mente nunca soubemos. O certo é que depois desse episódio ela apagou a irmã a ponto de, para o resto da vida, sequer pronunciar-lhe o nome. Também parou de se alimentar, estabelecendo total ausência, e recebeu com resignação a sentença de condenação à decapitação. Porém, antes disso, morreu de inanição. Léa, por sua vez, após alguns anos, saiu da prisão devido à sua conduta exemplar e voltou a morar com a mãe.

O que teoricamente motivou o crime?  Consideremos primeiro haver uma estreita ligação de desejos e dores semelhantes, além de uma reformulação idêntica que acabou por produzir um delírio a dois, possibilitado pela presença de um sujeito ativo que impõe o delírio e outro passivo que se deixa levar. Porém, a real causa de tamanha atrocidade não estava na loucura entre Léa-Christine, mas no par Clèmence-Christine, mãe e filha, duas psicóticas, cada uma com seu delírio. Clèmence num delírio de ciúme, em que as filhas são os objetos, e Christine num delírio persecutório e de reivindicação, cuja pretensão era escapar do olhar e das críticas da mãe, como havia feito sua irmã Emília, a filha primogênita, que foi ser freira.

Para Christine, a irmã representava ela mesma mais jovem. Ao cuidar de Léa, reparava a si mesma. No episódio ocorrido na prefeitura, devido à semelhança fonética das palavras, houve um deslocamento metonímico do significante mãe, em francês “mere” para o significante prefeito, “maire”. Assim, quando requeria ao prefeito a emancipação da irmã, exigia da mãe essa libertação. E, ao acusar o prefeito de persegui-la, estava acusando a mãe.

A intromissão da patroa na sua intimidade e as “observações”/críticas sobre seu trabalho fizeram com que Christine a colocasse no lugar da mãe Clèmence. Nessa transferência direciona todo o ódio que sentia por Clémence à Sra. Lancelin. Além do mais, na lógica paranoica, se odeia alguém, pensa que esse alguém a odeia. Portanto, ela vê na outra a sua própria intenção homicida.

Christine mergulha na loucura quando alucina que Léa está pendurada numa árvore com as pernas cortadas. Aquilo que habitava sua mente vai para o mundo externo e aparece como uma percepção. Porém, uma percepção do real distorcida. Como bem colocou Lacan, “a alucinação é o aparecimento no real daquilo que não pode advir no simbólico”. E isso que não pode ser simbolizado é a castração. Portanto, rever a irmã ou arrancar os próprios olhos não seria suficiente para desaparecer o horror da alucinação.

Há muito mais detalhes nesse crime. Entretanto, comentá-los alongaria demais o texto. Uma coisa podemos concluir: o intuito não era matar as patroas, mas aniquilar o mal que crescia dentro delas.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifranceflorenzano

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