Publicado em: 29 de outubro de 2025
Comparar Javier Milei, presidente da Argentina, e Milton Santos, geógrafo marxista e fundador do PT, pode parecer heresia no cenário polarizado atual. Mas ambos, por caminhos opostos, enxergaram o mesmo problema na América Latina, vendo-a igualmente como uma sociedade de castas.
Milton Santos descrevia o Brasil dividido entre cidadãos, os privilegiados; semicidadãos, que têm deveres e poucos direitos — onde está a maioria de nós —; e os não-cidadãos, excluídos até do mínimo, cuja vida vale pouco. São, em geral, os que habitam as favelas que ontem voltaram a ser palco de guerra no Rio de Janeiro.
Apesar do abismo entre texto e a prática, a Constituição de 1988 tentou romper essas fronteiras simbólicas ao declarar todos iguais em direitos e deveres. Contudo, a ausência do Estado nas periferias produz uma cidadania mutilada, e o vácuo deixado pelo poder público é ocupado por facções e milícias. Estima-se que 1/4 da população brasileira viva sob domínio de grupos criminosos como o Comando Vermelho e o PCC.
Belém tem sua versão dessa tragédia. Desde 1994, as chamadas “Respostas”, chacinas cometidas após a morte de policiais, tornaram-se parte de um ciclo de vingança e silêncio. Grupos formados por agentes e ex-agentes de segurança controlam bairros periféricos, regulam o comércio e impõem uma ordem paralela em territórios onde o Estado se retirou ou nunca esteve.
Os números mostram o avanço da violência e sua geografia: as chacinas concentram-se nas periferias. O Guamá lidera em registros, seguido por outros bairros como Terra Firme, Jurunas, Marco, Tapanã e Parque Verde.
A violência não é exclusividade da periferia, mas a banalização das mortes é. Durante os episódios de 2014 e 2019, vozes repetiam que as vítimas “devem ter feito algo”, como se o pertencimento territorial bastasse para justificar a morte – e depois foi apurado que não tinham qualquer envolvimento com o crime. O mesmo discurso se repete agora com as vítimas do conflito no Rio de Janeiro.
Essa naturalização da barbárie revela um país que ainda não reconhece parte de si. A guerra urbana brasileira não se resolve apenas com armas ou prisões, que reconheço que são necessárias no combate ao crime organizado, mas com plena cidadania. É preciso restituir o valor da vida onde o Estado se ausentou e romper, de fato, as fronteiras invisíveis que separam cidadãos de não-cidadãos. Só assim poderemos reivindicar uma cidade — e um país — que realmente nos pertençam.
 
                                                        
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