Publicado em: 12 de outubro de 2025
Num sábado que antecede o Círio, Belém é um espetáculo de contrastes.
O Arrastão do Círio (Pavulagem) cruza as ruas coloridas de fitas, os romeiros avançam de joelhos, a Trasladação segue o cortejo da estrela da festa e, logo ali, explode a irreverência da Festa da Chiquita. À primeira vista, pode parecer apenas mais um fim de semana de celebrações. Mas esse mosaico de expressões revela muito sobre quem somos — e sobre como as políticas culturais relacionaram-se com a cidade nas últimas décadas.
Para compreender essa mistura de expressões que à primeira vista parecem tão divergentes e coabitam de forma harmônica, é preciso voltar aos anos 1990, quando o conflito das paisagens culturais ganhou forma concreta. De um lado, o então prefeito e arquiteto Edmilson Rodrigues, que via Belém como o centro de uma cultura amazônica e indígena, e defendia que a cidade expressasse esse legado em sua iconografia, arquitetura e eventos. Do outro, o arquiteto Paulo Chaves, secretário de Cultura do Estado, que apostava na herança da Belle Époque como matriz simbólica — restaurando o Teatro da Paz, os palacetes do centro histórico e criando uma programação que projetasse Belém no circuito nacional e internacional de cultura.
Essas visões, embora politicamente opostas, eram também estéticas e ideológicas: de um lado, a Belém sincrética entre o urbano e a floresta; do outro, a Belém com forte herança europeia. No entanto, passados quase trinta anos, é difícil dizer que uma visão se sobrepôs à outra. O que se consolidou foi algo novo — uma síntese viva que reflete a própria definição de paisagem cultural, segundo a UNESCO, como
“ilustrativa da evolução da sociedade e dos assentamentos humanos ao longo do tempo, sob a influência das determinantes físicas e/ou oportunidades apresentadas por seu ambiente natural e das sucessivas forças sociais, econômicas e culturais.”
Em outras palavras, a paisagem cultural não é imposta por governos — é construída pelas pessoas, no cotidiano, nos gestos, nas crenças, nos sons e nas cores que reinventam o espaço urbano.
A paisagem que vivemos hoje em Belém é o resultado dessas interações entre memórias, afetos e territórios. É um patrimônio em movimento, no qual a cultura e a economia se entrelaçam e produzem novas formas de pertencimento. O Círio, talvez, seja sua expressão mais plena: o momento em que todas as Beléns coexistem — a sagrada e a profana, a erudita e a popular, a gourmet e a do peixe frito.
No fim das contas, o Círio mostra que os conflitos muitas vezes são apenas aparentes. A cidade se recria quando suas diferenças caminham juntas.
Feliz Círio!
P.S.: Para quem quiser se aprofundar nesse tema, publiquei um artigo sobre o assunto no ENANPARQ (2020).
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