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Enquanto alguns colecionam joias, relógios, imãs de geladeira, souvenirs de viagens ou discos, eu ando colecionando livros de crônicas, coletâneas preciosas de fragmentos da vida, da história e sobretudo da alma de gente que admiro bastante: Rubem Braga, Rubem Alves, Clarice Lispector, Vinícius de Morais, Fernando Sabino, Sérgio Porto (mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta), Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e mais recentemente Júlian Fuks e Antonio Prata. Atravessando o Atlântico e aportando na Terrinha são imprescindíveis Miguel Sousa Tavares, Miguel Esteves Cardoso, Maria do Rosário Pedreira e Valter Hugo Mãe, entre outros.

Crônicas são leituras rápidas, concisas, cabem em qualquer pequena folga do dia. Um breve intervalo no trabalho, as salas de espera de médicos e dentistas, uma obrigação fisiológica inadiável, aquele breve momento antes do sono; qualquer pausa na correria cotidiana traz sempre uma oportunidade para deliciar-se com uma boa crônica.

E, diga-se de passagem, muitas delas, embora curtas e ligeiras, são verdadeiros tratados de psicologia, sociologia, filosofia, ciência política e humanidades em geral. Com o talento imenso que possuem, os cronistas que referi normalmente precisam de poucas linhas para derramar sobre nós uma imensidão de ideias, e por isso mesmo é salutar ter livros de crônicas espalhados ao alcance. No quarto, na sala, no escritório, no carro, na casa de praia e onde mais for possível, nem que seja para nos lembrar que há vida inteligente além dos limites da tela de um telefone celular.

Em episódio recente, numa despretensiosa incursão à sacada do apartamento, reencontrei um livrinho maravilhoso chamado “O que se diz e o que se entende” (Global, 2ª ed., SP 2016), antologia de crônicas da inigualável Cecília Meireles (1901-1964), cronista, jornalista, pintora e, para muitos, a maior poeta brasileira de todos os tempos. Folheando a obra acabei por ler “Antiguidades”, texto breviloquente, não mais que seis parágrafos a preencher página e meia.

Nele Cecília descreve com maestria um antiquário e seu dono, chamando atenção para a suposta indiferença do comerciante ao significado de cada uma daquelas peças, itens que para ele são apenas artigos a negociar, comprar e vender, mas que fizeram parte da vida, da história e das emoções de muitas pessoas, sobrevivendo a elas como tudo aquilo que temos sobreviverá a nós mesmos.

“O dono da loja está sentado, sonolento, num cadeirão de couro lavrado. Pode ser que me engane, mas tenho a impressão de que não entende nada dos objetos que o cercam. Parece mesmo que lhe inspiram mais do que profunda indiferença, um vasto desamor (…) Entra-se na loja, apenas para ver, e ele continua sentado, sonolento, num torpor de quem se desligou completamente deste mundo.”

“Ali estão as garrafas de cristal dos banquetes dos nossos avós, garrafas sem tampas e tampas sem garrafas, pobres destinos desencontrados e inocentes. Ali estão belas maçanetas venezianas que deviam servir a portas maravilhosas de salões que não existirão mais. Pratos e xícaras, lampiões e jarras perfilam-se com serena dignidade nas prateleiras poeirentas. Pequenas joias quebradas, com falta de pedras. Trinchantes de lâmina enferrujada. Molhos e molhos de talheres com melancólicos monogramas entrelaçados (amorosos tempos de casamentos indissolúveis, de iniciais abraçadas, de lares que pretendiam ser a imagem da eternidade).”

Nas letras de Cecília a loja de antiguidades é uma metáfora da vida, da fugacidade que a reveste, da efemeridade que a ceifa e da imprevisibilidade que a resume. Por meio de objetos que no passado traduziram opulência e riqueza, e que hoje repousam solitários em prateleiras úmidas e olvidadas, danificados, incompletos e vazios dos sentidos que já ostentaram, a poeta carioca nos lembra que temos todos um destino comum, e que tudo aquilo a que damos extrema importância hoje já não terá relevância alguma amanhã, tal como ocorre com um rico acervo de obras de arte que vai a leilão após o falecimento do colecionador.

Do pó viemos, ao pó voltaremos. O recheio do interregno vai sempre se tornar supérfluo, mais cedo ou mais tarde, e o que importa é o bem que possamos fazer àqueles que amamos, aos que nos cercam, conosco convivem ou dependem de nós. Tudo tão simples, tão singelo, óbvio até, como sói acontecer com os cães, que em dez, doze anos ou pouco mais costumam distribuir mais amor que muitos homens ou mulheres em décadas de vida.

Seremos todos apenas memórias que durarão mais duas ou três gerações, e só o que nos cabe influenciar é onde e com que zelo estas memórias serão guardadas, no coração dos que vierem depois de nós ou sob o mofo inclemente do esquecimento, tal como constatou Cecília com o imenso talento que lhe era tão natural:

“Ah! compoteiras gloriosas, que um dia brilhastes com o topázio e o rubi dos doces de carambola e goiaba! Ah! taças lapidadas erguidas entre discursos, bordadas de sussurrante espuma! Ah! vulto de alabastro que fostes como um raio de luar entre remotas sedas drapeadas!… Tivestes os vossos donos, que vos amaram, que vos admiraram, que vos protegeram para que a vossa beleza não sofresse nenhum agravo. E agora sois objetos desaparelhados, que uns acham velhos demais, que outros não acham suficientemente velhos, e assim habitais esse mundo de poeira, e representais apenas um certo preço, o preço consignado nos catálogos, e que a memória de um homem sonolento diz em voz alta, como se vos batesse com uma vara e vos partisse.”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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