0

A mim me parece, com o perdão do pleonasmo, que certas queixas e reclamações estão fadadas a cruzar gerações, a vagar pelo tempo como vampiros amaldiçoados, arrastando-se em agonia enquanto esperam que algo os redima e liberte, cravando-lhes estacas no coração sob abundante aspersão de água benta. São como carmas imperecíveis, mantras que ecoam por séculos tentando legitimar condutas que, embora aparentem ineditismo, apenas perpetuam reações teimosas e inócuas – como se o crepúsculo pudesse antagonizar a escuridão ou à madrugada fosse dado rebelar-se contra a aurora.

Em outros termos, há lamúrias e indignações cíclicas, constantemente reiteradas pelos mais velhos diante do ímpeto dos mais novos, verdadeira síndrome de saudosismo, comodismo e medo do desconhecido, quase uma epidemia a contaminar indivíduos com idade superior aos cinquenta anos, como é o meu caso, cujos sintomas mais evidentes são a glamorização do passado, o desdém ao presente e o pessimismo em relação ao futuro.

Coisa comum é vermos nossos contemporâneos a praguejar contra o atual ‘status quo’, lamentando o mau caminho trilhado pelos jovens, o mau gosto das suas músicas, a nocividade dos seus hábitos, a dispersão que lhes causam as inovações tecnológicas, o abandono da cultura em privilégio do entretenimento barato, raso e despido de talento e beleza.

Em algum momento da vida nos vemos a lançar sobre a juventude, como que tomados de inveja do seu fulgurante vigor, aqueles mesmos vaticínios que tanto ouvimos quando éramos nós os jovens – “No nosso tempo era diferente; velhos e bons tempos”, “como piorou o mundo; onde é que isto tudo vai parar?”, “a continuar assim, que futuro terá esse país?”, ou ainda “a mocidade de hoje anda perdida, só enxerga o que lhes mostra a tela do celular” (ou o ecrã do telemóvel como resmungariam os lusitanos, nossos queridos patrícios nesta sublime pátria que é a língua portuguesa).

É sempre assim, num dado momento o que é novo assusta e amedronta, seja porque não o compreendemos, seja porque nele já não cabemos. A novidade vem chegando sorrateira, silenciosa, comendo pelas beiradas, ocupando os espaços daquilo tudo a que estávamos acostumados, daquilo tudo em que repousávamos confortáveis, sem envidar grandes esforços. E aí, naturalmente, nossa primeira reação é criticar, repelir e condenar.

Certo é que há verdades absolutas, certezas intransponíveis que não variam ao sabor das convicções pessoais, tal como o produto que não se altera pela ordem dos fatores, constatações quase matemáticas. Pode-se até gritar e espernear mas não adianta coisa alguma, qualquer insurreição é um nada. É o que ocorre, por exemplo, com a música da garotada de hoje, um lixo se comparada àquela que produziu a garotada de ontem – o que a rapaziada ouve atualmente é totalmente descartável, de uma pobreza mais que franciscana, deformidade harmônica e lírica irreversível.

Mas, por outro lado, também é inegável que há muito de positivo e salutar nas transformações que os jovens criam e consomem. É deles a ousadia que move o mundo, a curiosidade que leva à evolução, o desassombro que permite à humanidade novas descobertas, elucidar aquilo que há pouco era mistério. E não se diga que grande parte das revelações científicas vem de pessoas maduras, e nem que os cientistas mais geniais em sua maioria são idosos, pois estes permanecem com a mente jovem e aberta, seja qual for a sua idade cronológica.

No fundo, tudo isto não passa de um conflito de gerações, a eclodir no exato instante em que surgem candidatos aptos a ocupar os nossos postos, a desempenhar as nossas funções e, enfim, a assumir o nosso protagonismo. Nada mais normal e corriqueiro, afinal ninguém se desacostuma sem resistir ou sai de cena sem protestar.

É assim que a vida se desenvolve e eterniza, com a rebeldia a interpelar o conformismo, a impetuosidade a agitar a calmaria, e não é de hoje, muito ao contrário. Acontece agora sob o nosso escrutínio mas já aconteceu inúmeras vezes no passado e voltará a ocorrer no futuro. Hoje questionamos a tecnologia, as redes sociais, a inteligência artificial, ontem contestávamos o sistema de ensino, as novas formas de arte, as mídias insurgentes, a comunicação de massa.

Andávamos ainda pela metade do Século XX e Cecília Meireles já expressava essas preocupações, como mostra um trecho da crônica “Rabindranah, pequeno estudante”, dedicada ao poeta e pensador indiano Rabindranah Tagore, uma de suas fortes influências: “As escolas são poucas, os alunos são muitos, os professores não têm grande paciência, o dever cumprido calcula-se mais pelo horário do que pelo devotamento e a compreensão do ‘fato humano’, as crianças estão transtornadas por esses horrores do cinema, da televisão, das histórias em quadrinhos – que substituem a vida, que são a sua melancólica experiência, fora da mediocridade do ensino comum, e chegam a ser a sua libertação, a sua poesia, o seu contentamento (….) Ah… como tudo piorou tanto! O progresso cresceu, os livros aumentaram, os programas ficaram imensos, e a criança está muito mais engaiolada na sua solidão, cercada de muito mais problemas, com a voz do espírito abafada por muitas inutilidades.”

Em outro texto encantador chamado “Escola de bem-te-vis”, a mesma Cecília descreve com bom humor e lirismo essa guerra de gerações: “Antigamente era assim, agora, porém, as coisas tem mudado Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: ‘Bem-te-vi‘ – o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: “Te-vi!’. Grande escândalo. Uma pausa na verde escola aérea. ‘Bem-te-vi! Bem-te-vi’, tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou muita graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de ‘Te-vi! Te-vi! Te-vi!’, que deixou o próprio eco muito desconfiado. Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: ‘Bem-te-vi! Bem-te-vi!’ – e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois ouviam a abreviatura dos pais: ‘Te-vi! Te-vi!’. Mas acharam muito comprido ainda. (Que trambolho, a família). E passaram a responder, por muito favor, ‘Vi! Vi!’. Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato…”

É um confronto inevitável, e se é assim tanto melhor que seja leve, pacífico e construtivo, tanto melhor que seja pródigo e generoso. Bom lembrar, nesse sentido, que na natureza nada se perde, tudo se transforma, e que a luz das estrelas mortas dura anos a iluminar os confins do universo.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

Por que devo obedecer ao direito II

Anterior

Raí, orgulho do Brasil

Próximo

Você pode gostar

Comentários