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Há alguns meses comprei um trompete. É, sem dúvida, um dos objetos mais bonitos que já adquiri. Pergunta: toco trompete? Resposta: não, nunca toquei e nem sei (ainda) como tocá-lo. O que sei, isto sim, é que comprá-lo me causou enorme prazer. Alguns me tomaram por tonto, acusaram-me consumista. Estava eu a gastar dinheiro com algo inútil, eis que não sei como manuseá-lo.

Quanta heresia, quanta incompreensão! Um trompete jamais será inútil, nunca será supérfluo ou irrelevante. Muito ao contrário, um trompete comprova inequivocamente a excelência do engenho humano a partir do domínio do fogo e do metal, obra-prima de engenharia da qual resultam sons que, aos meus ouvidos, são dos mais bonitos que se pode extrair de um instrumento musical. Isso sem falar na sua beleza plástica, que paira absoluta e inquestionável acima das subjetividades.

Não li todos os livros que tenho em casa mas isso os torna inservíveis? Um grande vinho perde seu valor se pertencer a quem não bebe? Uma Ferrari deixa de ser uma Ferrari para quem não sabe dirigir? Um Patek Phillipe torna-se comum e vulgar se o dono não souber ver as horas? Saramago, Cervantes, Garcia Marquez, Jorge Amado e Dickens deixam de ser gênios porque muitos não leram seus livros? Mozart, Beethoven e Bach deixam de ser gênios porque muitos preferem ouvir sertanejo e funk? É óbvio que não, tal como também é óbvio que meu trompete jamais será inútil, nunca será supérfluo ou irrelevante.

Vinícius de Morais uma vez disse que o whisky é o melhor amigo do homem, que o whisky é o cachorro engarrafado. Se é assim, se o whisky podia ser amigo do ilustre poetinha, por que razão o trompete não pode ser meu amigo? Afora isso, como inexistem na legislação e na jurisprudência brasileiras (até o momento), dispositivos ou decisões que me proíbam de ter um trompete, declaro-me no legítimo exercício do direito de possui-lo, e só não vou parodiar Vinícius em respeito à grande amiga que tenho em casa: Amora, uma adorável cadelinha lhasa apso que em 2025 completará dez anos com a família.

Pois bem, depois de um período recolhido em seu estojo, numa espera paciente e resignada, resolvi que era chegada a hora de expor o trompete, de dar a ele o merecido destaque, senão como inspiração para o desafio de aprender a tocá-lo, ao menos como obra de arte a encher os olhos de beleza. No tripé apropriado que ganhei de um grande amigo ele agora repousa suntuoso sobre o armário de livros, campana para baixo, bocal para cima, pistos, bombas e dedeiras cuidadosamente arrumados ao longo do corpo esguio e elegante.

Em certas ocasiões eu o contemplo e me decido a estudá-lo, já tenho até o contato de dois professores. No mais das vezes, contudo, falta-me coragem ou sobra-me bom senso. Imagino-me a profanar sua majestade, soprando-o com truculência e falta de modos, maltratando-o com a ausência de talento que só a imodéstia me permitiria ignorar. Antevejo a família e os vizinhos incomodados com a sonoridade disforme e desafinada, mais barulho do que música. E aí penso que talvez seja melhor apenas contemplá-lo, mantendo-o íntegro, indene, sublimado pela paixão.

Sento-me para ler e da cadeira posso vê-lo pouco acima, à esquerda. Levanto a vista, olho de soslaio e lá está ele conferindo dignidade ao gabinete, imponente, belo, tão cuidadosamente polido que mais parece um espelho dourado a refletir o ambiente e a luz com a suave sinuosidade das suas curvas.

Posso não saber tocá-lo, mas sei ouvi-lo com muito gosto. Deixo que fale comigo por horas, e se desconheço sua língua tenho o privilégio de poder recorrer a intérpretes maravilhosos, virtuoses do quilate de Arturo Sandoval, Márcio Montarroyos, Chet Baker, Dizzie Gilespie, Louis Armstrong, Wynton Marsalis, Clifford Brown e Miles Davis. Cá entre nós, com tradutores dessa qualidade, preciso mesmo preocupar-me?

Por enquanto o amigo trompete me basta pela companhia que me faz. Quem sabe um dia me atrevo a aprender seus mistérios, ainda que superficialmente. Não tenho a presunção de me tornar trompetista. Já não tenho tempo para isso. Música é tanto mais fácil quando se aprende em pequeno, na infância. Se, contudo, eu conseguir tocar apenas duas músicas, três quem sabe, nossa amizade já me terá sido valiosa, mais do que já é. Com a paciência que ostenta, quieto ali sobre o armário, sei que me permitirá reiteradas tentativas, que tolerará erros grosseiros e que estará sempre pronto e disposto para um sem-número de repetições.

Ao final, se dele eu conseguir extrair ao menos as notas iniciais, os acordes básicos de Misty e Stardust, eu e meu trompete teremos sido como Tom Sawyer e Huckleberry Finn, Santiago e o menino Manolin, Quixote e Sancho Pança, Sherlock Holmes e Watson, Oliver Twist e Mr. Brownlow, Cipriano Algor e o cão Achado, Barandão e Pedro Bala, Guma e Rufino, companheiros inseparáveis, eu e meu amigo trompete.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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