Publicado em: 21 de setembro de 2025
Hoje nossa coluna dará espaço para falar de um dos mais importantes pensadores viventes no século XX. Frantz Fanon (1925-1961) foi um dos intelectuais mais radicais e incisivos do século XX, cuja vida curta não o impediu de deixar um legado que atravessa as fronteiras da filosofia, da literatura, da medicina e da política. Nascido na Martinica, em uma sociedade marcada pelas contradições coloniais, Fanon experimentou a complexa identidade fraturada entre a herança africana e o peso da dominação europeia. Essa vivência foi decisiva para moldar sua visão de mundo e orientar a sua trajetória intelectual, militante e literária.
A obra de Fanon não pode ser separada de sua vida. Sua formação em psiquiatria, iniciada na França, mostrou-lhe não apenas os mecanismos clínicos de tratamento das doenças mentais, mas, sobretudo, a intima ligação entre a alienação psíquica e a alienação colonial. Para ele, o colonialismo era uma ordem política e econômica: e para além disso, era a materialidade de uma violência que corroía subjetividades, desfigurava identidades e aprisionava o ser humano em estereótipos. Nesta perspectiva, emerge a força de livros como Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), em que analisa a interiorização do racismo e a busca dolorosa do negro por reconhecimento em um mundo que insiste em sua negação.
O pensamento de Fanon está intimamente ligado ao movimento da Negritude, liderado por figuras como Aimé Césaire, seu professor no liceu. Frantz Fanon, contudo, dialoga criticamente com esse movimento. Se a Negritude exalta a herança africana como fonte de orgulho e resistência, Fanon alerta para os riscos de cristalizar a identidade negra em uma essência fixada, pois acreditava que a libertação deveria ir além da exaltação cultural: ela exigia transformação estrutural, política e social. Ainda assim, a Negritude foi para ele um horizonte inspirador, um primeiro gesto de recusa ao discurso colonial.
Inspirado no existencialismo de Paul Sartre, sua atuação como psiquiatra na Argélia, em plena guerra de independência, evidencia sua fusão entre teoria e prática. Ao lidar com pacientes que carregavam traumas tanto da opressão colonial quanto da violência revolucionária, Fanon percebeu que a clínica precisava se abrir ao social e ao político. O hospital não poderia ser um espaço neutro, e a psiquiatria, para ele, deveria reconhecer as raízes históricas do sofrimento humano. Esse olhar humanizado e comprometido fez de Fanon um dos precursores daquilo que hoje se pode chamar de psiquiatria descolonial.
Na Argélia, Fanon se engajou de modo irreversível na luta contra o colonialismo francês. Como membro ativo da Frente de Libertação Nacional, ele não se limitou a escrever; assumiu riscos, participou de ações políticas e tornou-se uma voz decisiva na denúncia das brutalidades coloniais. Em obras como Os Condenados da Terra (1961), escrita em seus últimos meses de vida, encontramos um texto de combate, inflamado, e absurdamente humano, no qual Fanon convoca os colonizados a romperem as correntes que os aprisionam e a construírem um novo humanismo.
Sua excepcionalidade estava na capacidade de diálogos e entrelaçamentos na literatura, psiquiatria e colonialidade. Seus textos unem análise científica e linguagem literária para expressar a dor e a esperança dos povos colonizados. Sua experiência clínica legitimava sua autoridade para compreender a psique; a prática política, a materialidade da opressão; e sua escrita literária, a força de emocionar e mobilizar. Esse tríplice movimento faz de Fanon um pensador que ultrapassa categorias, atravessando campos disciplinares e fronteiras geográficas.
Fanon foi, um crítico da desumanização. Seu olhar não se restringia à denúncia: ele sonhava com a construção de uma nova humanidade, liberta da lógica do racismo, da exploração e da alienação. Para ele, a verdadeira revolução alicerçava a conquista da independência nacional e a transformação radical das estruturas sociais e dos modos de ser. Era uma intimação para que os sujeitos colonizados deixassem de ser objetos da história e se tornassem protagonistas de sua própria libertação.
Sua morte precoce, aos 36 anos, em decorrência de uma leucemia, interrompeu uma vida que urgia intensidade. Sua obra é testemunho. Intelectuais, militantes, escritores e psicólogos em todo o mundo continuam a encontrar em Fanon uma fonte de crítica. Seu pensamento reverbera as lutas contra o racismo , nas reflexões sobre saúde mental em contextos de violência, e nas literaturas que narram as feridas e resistências dos povos colonizados.
Celebrar o centenário de Frantz Fanon, recolocamos sua voz no presente. Num tempo histórico ainda marcado por colonialidades persistentes, desigualdades e racismos naturalizados, sua palavra é urgente. Fanon nos lembra que não basta compreender a opressão: é preciso enfrentá-la com coragem, lucidez e solidariedade.
Assim, no marco dos cem anos de seu nascimento, Fanon ressurge como pensamento crítico que desafia a passividade e provoca a ação. Seu legado é uma provocação a pensar criticamente, a sentir humanamente e a agir politicamente. Frantz Fanon, cem anos depois, permanece uma luz no coração da luta pela libertação e pela dignidade humana.
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