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O manto tupinambá, uma peça ancestral com mais de 300 anos, chegou ao Rio de Janeiro sob sigilo na primeira semana de julho. Devolvido pelo governo dinamarquês para ajudar a recompor o acervo perdido no incêndio que destruiu o Museu Nacional em 2018, o item raríssimo gerou controvérsias quanto ao seu tratamento cultural. A artista e antropóloga Glicéria Tupinambá, integrante do Grupo de Trabalho (GT) do Ministério dos Povos Indígenas para a recepção do manto, criticou a maneira como o item foi recebido. Segundo ela, o grupo deveria ter sido informado previamente para organizar a acolhida do manto com os devidos rituais e cerimônias religiosas.

“Nós do Grupo de Trabalho iríamos tratar de como seria a recepção, para acolhida ao manto quando chegasse. A gente não estava sabendo quando o manto chegou. Não só repatriamento institucional com embaixador e museu apenas é necessário, mas também da presença dos rituais e cerimônias religiosas. Diferente de tratar o manto como simplesmente um objeto”, explica Glicéria, em entrevista ao G1. Glicéria vem realizando um trabalho de encontro e pesquisa dos mantos e outros artefatos de seus ancestrais junto às instituições europeias. Ela defende a importância do manto e de outros artefatos como partes vitais da cultura tupinambá que precisam ser vistas em seu todo.

Feito de penas vermelhas de Guará, o manto mede cerca de 1,80 metro de comprimento e 80 centímetros de largura. Ele é costurado em uma malha através de uma técnica ancestral do povo tupinambá. Existem apenas outros dez mantos desse tipo no mundo, produzidos entre os séculos 16 e 17. Atualmente estão todos em museus europeus – com a excessão do devolvido ao Brasil pela Dinamarca. O item ancestral dos povos originários do Brasil foi solicitado pela comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença (ainda não demarcada), em 2002. Em agosto do ano passado, a doação foi anunciada em uma ação conjunta do embaixador brasileiro na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos, e do Museu Nacional. O manto estava em Copenhague desde pelo menos 1699.

Para o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, o manto tupinambá é uma peça de valor inestimável, com importância histórica superior a qualquer mineral, fóssil ou artefato, já que ele representa as primeiras populações brasileiras e, diferente com o que acontece com as múmias do Egito, por exemplo, os mantos são poucos. Uma rede interdisciplinar de especialistas apresentou uma proposta pela “conservação, proteção e restituição do patrimônio cultural brasileiro” no portal Brasil Participativo, plataforma do governo federal para a elaboração do Plano Plurianual 2024-2027.

É importante ressaltar que o governo dinamarquês devolveu ao Brasil apenas um dos cinco mantos sagrados tupinambás que estão em Copenhagen. Há outros três na Itália (dois em Firenze e um em Milão), um em Basiléia, na Suíça, um em Brulexas, na Bélgica, e um em Paris, na França. Estes itens foram roubados por missionários jesuítas, traficados como espólio de guerra ou então trocados em negociações desiguais em um comércio que claramente favorecia os colonizadores. Tratados como itens de valor em coleções reais, algumas peças chegaram a ser usadas por nobres europeus, como mostra um registro de 1599 que revela um integrante da corte de um duque alemão vestido com um manto vermelho em uma procissão intitulada “Rainha da América”. Outro exemplo é a princesa Sophie von Hannover da Boêmia, retratada em uma pintura a óleo de 1644 usando um desses mantos.

Em entrevista à CNN Brasil, Sandra Benites, curadora indígena Guarani Nhandeva, declarou: “Não adianta trazer para o Brasil e isso ficar num lugar que a gente não tem acesso, que não tem políticas, onde não vai ser discutido nada. Não é somente trazer de volta, e sim questionar como essas instituições podem organizar uma forma de reparação histórica para essas comunidades, para as populações indígenas do Brasil”. A diretora de Artes Visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte) acrescentou: “É necessário que se discuta sobre isso, que se crie um debate maior. Não é um debate de apenas uma comunidade, porque isso envolve a identidade, a cultura e a história brasileira. Quando a gente tem vontade ou desejo de buscar, nós encontramos inúmeras dificuldades de acesso sobre elas. Às vezes, por cansaço, a gente desiste. Tem que se criar políticas para que os indígenas tenham acesso a esses artefatos”.

Imagem: Museu Nacional da Dinamarca

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