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Na continuação da série de artigos sobre mulheres que têm variadas atuações políticas em prol de amplificar as lutas femininas, hoje falaremos sobre a socióloga e cientista política paraense Karol Cavalcante, nascida e criada na periferia de Belém, filha de uma empregada doméstica e de um taxista, e prestes a dar um passo significativo em sua jornada acadêmica: concluir o doutorado. Atualmente, ela está em um intercâmbio acadêmico na Universidade Católica do Chile, em Santiago, sob orientação da professora Julieta Suárez-Cao, uma das intelectuais feministas mais respeitadas da América Latina, premiada pela Associação Americana de Ciência Política por sua participação na promoção, elaboração e divulgação da Lei de Paridade de Gênero implementada nas eleições constituintes chilenas, que impactou significativamente aquele país com um avanço significativo na busca por uma política mais equitativa e inclusiva na América Latina. Em 2016, Suárez-Cao cofundou a Rede de Politólogas, uma iniciativa que visa promover e fortalecer o trabalho de mulheres dedicadas às ciências políticas na América Latina.

“Eu sou de uma família de três irmãos. Minha mãe, durante uma boa parte da vida, se dedicou aos cuidados da casa, enquanto meu pai trabalhava como taxista. Quando já estávamos um pouquinho maiores, ela passou a trabalhar como empregada doméstica. Fomos criados ouvindo “vocês precisam estudar e entrar na universidade”. Minha mãe e meu pai só terminaram o ensino fundamental, mas eles tinham uma obsessão em colocar os filhos em uma universidade.”

Karol conta que o ensino superior, então, era “aquele lugar do sonho” para ela e os irmãos, porém, até os dezesseis anos, nunca tinha ouvido falar em mestrado e doutorado. Ela estudou o ensino médio na Escola Estadual Augusto Meira, no bairro de São Brás, em Belém, e muitas vezes não podia ir para a aula porque morava na Avenida Augusto Montenegro e não tinha dinheiro para a passagem de ônibus. “Eu não lembro de ter nenhum vizinho, nem amigos, nem parentes que fossem doutores. A minha avó era servente de escola e meu avô taxista. Então, eu volto no tempo, recordo de muita coisa, mas não recordo de absolutamente ninguém doutor. Eu costumo dizer que eu serei a primeira da minha família a se tornar doutora, mas eu não quero ser a única”, enfatizando seu desejo de que mais mulheres, meninas, da periferia de Belém, também tenham a oportunidade de serem.

Depois da graduação, Karol entrou no mercado de trabalho e deixou em espera a vontade de fazer a pós graduação, como se dissesse pra ela mesma que não era possível, que não iria conseguir e que não teria como trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Só depois de sete anos da conclusão da sua graduação é que ela voltou para a universidade para cursar o mestrado. Quando terminou, decidiu que seria doutora, mesmo considerando a dificuldade em ser aprovada. Naquele momento ainda não havia o doutorado em ciências políticas na UFPA, então ela concorreu a vagas na UFPE, UFPR e na Unicamp e passou nas três. Depois de muitas dúvidas, decidiu ir pra Unicamp. Foi então que veio a questão: “e agora? Como morar em São Paulo?”

“Eu tinha acabado de disputar a presidência estadual do PT, era a primeira vez em quarenta anos que uma mulher disputava a presidência do partido. Portais e blogs, como o da Franssinete Florenzano, deram destaque à minha participação com manchetes do tipo “nasce uma nova estrela no PT”. Tinha tido um resultado eleitoral inimaginável disputando com os velhos políticos petistas. A minha votação era surpresa pra todos – e a considero como sendo fruto da insatisfação da militância com o imobilismo no PT.”

Neste momento, muita gente começou a opinar de que aquela era a hora de concorrer a um cargo legislativo, mas Karol disse que não iria disputar eleição e sim que iria estudar. Amigas próximas organizaram uma rifa para que ela pudesse ter condições financeiras de começar a vida em outro Estado com um mínimo de segurança, sem tanto “perrengue”. Ela conta que achou que não daria certo e que ninguém iria querer comprar, mas para sua surpresa as rifas foram todas vendidas, o que rendeu uma boa reserva financeira pra que pudesse estruturar sua vida em outro Estado. “Cheguei no aeroporto de Viracopos com uma mala e uma caixa com dois copos, um prato e três talheres. Ali começava um sonho!” Depois de terminar todas as disciplinas com conceito excelente, a pesquisadora queria ainda mais.

“Eu queria estudar com um professor que era referência no meu tema de estudo, então decidir fazer uma seleção pra ir estudar na USP. Fui aceita e deixei Campinas para ir morar em São Paulo, capital. Depois de seis meses na USP, conheci gente de vários países da América Latina. Aquela experiência foi central pra que eu decidisse estudar fora do Brasil. Não foi uma batalha fácil, foi muito difícil, marcada por frustrações em alguns editais, pelo preconceito e xenofobia, que infelizmente é muito presente nos grandes centros quando você vem do Norte do país.”

Em sua tese de doutorado, ela estuda a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) para as candidaturas femininas no Brasil. O FEFC, implementado nas eleições brasileiras de 2018, obriga os partidos a destinar pelo menos 30% dos recursos para as campanhas de mulheres, conforme determinação do judiciário. Essa medida já mostrou resultados positivos, com pesquisas indicando que as candidaturas femininas têm recebido mais recursos nesse modelo de financiamento público do que no anterior, que era baseado em financiamento empresarial. Esse aumento de recursos também refletiu no crescimento do número de mulheres eleitas para as casas legislativas.

A América Latina, embora pioneira na implementação de políticas de igualdade de gênero, ainda vê o Brasil como um dos países com menor participação feminina na política. Em contraste, o Chile tem se destacado como um laboratório de sucesso na promoção da equidade de gênero na política, servindo como modelo para outros países da região. O intercâmbio de Karol representa uma oportunidade de internacionalização de sua pesquisa. A ida ao Chile permite o diálogo com pesquisadores de outros países, algo mais comum nas universidades de grandes centros, mas menos frequente nas instituições da Amazônia. Ela conta que foi muito bem recebida e que está cursando disciplinas sobre partidos políticos, apresentando sua pesquisa em grupos de estudos, e ampliando sua rede de contatos através de contatos diários com cientistas políticas da Colômbia, Argentina, Chile e Equador que investigam temas semelhantes.

Essa vivência acadêmica oferece à cientista uma chance de amadurecer e aprofundar sua pesquisa, especialmente no que tange à participação das mulheres nos partidos políticos na América Latina. A literatura e o conhecimento adquiridos no Chile serão incorporados à sua tese de doutorado, que dedica um capítulo específico à organização das mulheres nos partidos políticos da região. Karol enfatiza que este tipo de experiência enriquece não apenas seu trabalho acadêmico, mas contribui efetivamente para o engrandecimento do debate sobre a participação feminina na política brasileira e latino-americana.

A conquista de Karol ultrapassa o pessoal para tornar-se também simbólica. O objetivo é abrir caminho para que muitas outras meninas, especialmente aquelas que estudam em escolas públicas, possam seguir o mesmo percurso e alcançar altos níveis de educação, considerando-se prova viva de que os sonhos podem sim se tornar realidade, independentemente das condições iniciais, mesmo coma observação de que, embora as mulheres sejam maioria nas salas de aula, elas enfrentam um “efeito funil” na academia, onde são minoria entre os docentes, nas bolsas de pesquisa de produtividade, nas coordenações de cursos e nas reitorias. O ambiente acadêmico, em geral, é hostil para as mulheres, e essa hostilidade se agrava para aquelas que são mães, com a universidade muitas vezes se tornando um espaço de negação. A gravidez na pós-graduação é frequentemente vista como uma sentença para o fim da carreira, evidenciando as dificuldades específicas enfrentadas pelas mulheres nesse ambiente. Ainda assim, apesar de todas as adversidades, há uma nova geração de mulheres que, através da educação, está rompendo barreiras, conquistando espaços antes inacessíveis e ampliando as vozes femininas, desenvolvendo trabalhos que contribuem para que a participação política de mulheres aumente cada vez mais.

“Eu espero em algum momento da vida poder retribuir todo o investimento público feito em minha formação compartilhando conhecimento com os que mais precisam, fortalecendo o ensino superior e permitindo que ele realmente chegue em lugares do Pará onde jamais imaginamos chegar. Uma vez eu vi a Franssinete Florenzano escrever que na geração dela só era possível estudar mudando pra Belém. Hoje está menos desigual, mas segue desigual. Eu quero que a Ufopa, que a Unifesspa cheguem ainda não chegaram. Eu quero que o povo do Marajó possa ter uma universidade, que é um sonho antigo daquela região. É para isso que toda a minha formação ao longo desses anos estará a serviço.”

Quando questionada sobre uma futura disputa eleitoral, é enfática:

“Não me vejo candidata. Considero a política um espaço adoecedor para as mulheres. Mas não deixarei jamais de opinar sobre a vida política no meu Estado, a estimular mulheres para que mudem esse espaço tão cruel conosco, para que tenham a coragem que talvez em algum momento tenha me faltado. Hoje eu me vejo muito mais compartilhando conhecimento com a minha formação do que enfrentando as velhas burocracias machistas que possuem raizes profundas nos partidos políticos, independente do espectro ideológico. Quando o assunto é interditar mulheres na política, os partidos não se diferem muito. A história tem nos mostrado que as principais mudanças que beneficiam as mulheres vieram por iniciativas do judiciário e não por legisladores. Isso diz muito sobre a disposição das nossas casas de leis em serem espaços acolhedores para as mulheres, para que mais mulheres cheguem nesses espaços, então eu não tenho dúvida: o meu lugar é a sala de aula!”

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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