Nos últimos anos, temos visto no Brasil e em outros países uma intensa discussão em torno do chamado “identitarismo”, querendo significar muitas coisas a se depender de quem conjura essa entidade arcana. Algumas vezes, a bem da verdade, querendo significar, no final das contas, coisa alguma. Em algumas versões envolve, dentre outras disputas, acusar uma minoria de enredar-se em um “elo narcísico”, abrindo mão daquilo que seria o “universal” ou mesmo das “grandes causas”. Quem sabe, no entanto, errando o alvo tenhamos acertado ao menos uma das flechas em nossa mediocridade atual e possamos, a partir dessa discussão, partir para gramáticas políticas mais amplas? É nesse sentido que a articulação entre a questão racial e a construção de um projeto nacional em Guerreiro Ramos parece ainda ter muito a ensinar ao tempo presente.
Partamos, no entanto, do afamado identitarismo. Se ele quer significar algo como a redução da política ao enredamento narcísico de grupos minoritários nada me parece mais “identitário” que o nacionalismo xenófobo, o colonialismo e suas ideologias e, mais recentemente, homens toscos de meia idade posando para fotos com óculos escuros e armas imaginárias com canos de dedo indicador com unhas por fazer. O fato de a categoria não recair, sobretudo, sobre esses grupos, já deveria colocar sob alguma suspeita seu uso efetivo no debate atual. Se resta a discussão “doméstica” entre progressistas, faltaria saber se é a categoria mais precisa e mais promissora. De saída, não me parece.
Por outro lado, não se pode negar, seja por uma injunção dos tempos ou por uma crise programática e espiritual, quiçá por ambas, um recuo do progressismo diante de grandes categorias, tendo temas como nação ou projeto nacional sido relegados às prateleiras do mofo ou das ideologias diante de torquemadas juvenis, prontos a desmanchar no ar tudo o que ainda é sólido (sem a mais vaga ideia, vocação ou paciência para por algo no). Seja isso um projeto ou uma corrupção de certas correntes de pensamento, atribua-se a culpa, cultural que seja, ao “pós-estruturalismo” ou outras correntes de pensamento, o fato é que somos cada vez menos “treinados” (a ideia de treino já seria um “condicionamento” opressivo para alguns) para resolver problemas concretos e sonhar com grandes projetos práticos.
Da mesma forma, o espaço destinado a projetos e programas tem sido ocupado cada vez mais por uma hipertrofia dos “afetos”, das “performances” e quejandos, talvez sendo mais preciso falar em uma era do “emotivismo” a propriamente uma era do “identitarismo”, alcunha que, além de imprecisa, tem sido um cavalo de troia do reacionarismo, mesmo diante das mais básicas reivindicações, que de bandeiras civilizatórias converteram-se repentinamente em “pautas identitárias” ou “simbólicas”, sendo esvaziadas de sua materialidade. Não é preciso ir longe a este respeito. Basta um pouco de atenção para se ver que a principal reivindicação dos movimentos negros, de mulheres e LGBTQIAP+ no Brasil hoje consiste simplesmente no direito de não morrer.
Mas nada disso, é claro, convenceria quem foi cancelado ou teve sua reputação atacada por turbas de jovens que respondem por “identitários”, mesmo que se trate de um movimento residual, possivelmente universitário e de classe média. É um grupo barulhento e culturalmente influente. E sabemos que, para eles, as ofensas às suas sensibilidades valem mais do que qualquer objetivo político estratégico ou que a formação de laços sociais consistentes na sociedade brasileira é tarefa menos excitante que a denúncia perpétua das escorregadelas alheias (que delícia). São os aliados secretos dos milicos de Chico Buarque de Holanda, aqueles que “inventaram o pecado, mas esqueceram de inventar o perdão”. O ateísmo também tem lá suas carolices.
Seja uma causa ou o sintoma de uma crise, seja por conta do “financiamento de agências” ou da derrocada do bloco socialista, o “emotivismo” não deixa de ser uma esfinge, ou melhor, um bode na sala para a esquerda e para o pensamento progressista. Mas apesar dos possíveis e alegados fatores “estruturais” envolvidos (insert a palavra capitalismo neoliberal here) há trabalho por se fazer. E um deles é criar linguagem. Como diria Nietzsche, o poder de nomear as coisas é o poder mais humano e criador de sentido que existe. E essa linguagem deve ser capaz de articular o que há de mais profundo em nós com grandes metas coletivas, que retirem a política do âmbito das sensibilidades e da mera teatralização do eu.
Isso porque seria um grande retrocesso, como gostariam alguns, que, em nome da retomada das grandes narrativas, congelássemos o “eu” ou o “nós” em mistificações ou disséssemos que nada disso importa para a política. Esse é o exemplo das ideias nacionalistas que começam elogiando a grandeza das forças heterogêneas da nação brasileira para, logo depois, pô-las para dormir. É também o caso de mistificações como a democracia racial associada a Gilberto Freyre, que além de aprisionar o “eu” de grande parte da população brasileira em caricaturas e visões folclóricas, naturaliza a pobreza, a desindustrialização, o colonialismo e outras pragas antinacionais que assolaram e ainda assolam o Brasil.
Mas e se não precisasse ser assim? E se pudéssemos construir uma linguagem que levasse a sério as opressões de raça e classe (e outras também) e, ao mesmo tempo, não só se abrisse como as articulasse com a construção de um projeto nacional, sendo, em tudo, bem menos abstrata e ligada a problemas da ordem do dia que as teorias estudadas em grande parte das universidades brasileiras de hoje? Pois vejo nas reflexões sobre raça e nação na obra do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, nos idos anos 50, alguns elementos importantes para uma reconstrução do debate nacional nos dias de hoje.
Em “O problema do negro na sociologia brasileira” (1954), retomando em muitos pontos ideias de seus textos anteriores, Guerreiro Ramos desenvolveu uma pretensão de articular a questão racial brasileira em “bases científicas”. Mas, para o sociólogo baiano, é bom que se diga, embora os princípios gerais do conhecimento positivo fossem “universais”, o trabalho científico estaria sempre direta ou indiretamente articulado a um “projeto nacional de desenvolvimento, que transparece nos objetos em que incide”.
Essa afirmação não diria respeito simplesmente, embora também o diga, ao que se deseja pesquisar em sentido estrito, mas às lentes que se usa para a análise dos fenômenos implicados. E a questão racial, segundo Guerreiro, seria um exemplo por excelência da importância desse tipo de questionamento. Para ele, grande parte da intelectualidade brasileira, até aquele período, teria assumido modelos de antropologia europeia e norte-americana para análise da questão racial que configurariam, em larga medida uma “racionalização ou “despistamento da espoliação colonial”.
Essa afirmação categórica seria facilmente visualizada nas consequências práticas da adoção de certos tipos de ciência, desdobradas em “terapêuticas” que variariam desde noções abertamente eugenistas até aquelas que apostariam em medidas “sanitárias” para resolver o “problema do negro”. Na melhor das hipóteses, segundo Guerreiro Ramos, haveria uma “estetização questão racial no Brasil” como forma de supostamente incorporar o negro à realidade nacional, querendo com isso significar algo como uma “folclorização” do negro ou uma incorporação nacional na ordem do pitoresco e, portanto, do subalterno.
De um modo geral, a própria colocação de um “problema do negro” pelos cientistas sociais de sua época, sendo o negro, no entanto, simplesmente parte do povo brasileiro, consistiria em um sintoma, em algo que apontaria para uma “patologia social”. Uma vez investigada, essa patologia conduziria, dentre outros aspectos para a adoção profunda da psicologia, do padrão estético europeu e da leitura do país e de si próprio a partir do ponto de vista da própria alienação.
Lida dessa maneira, portanto, a “questão do negro” seria ela mesma um ato de má-fé ou equívoco a ser desfeito por uma tomada de consciência a ser provocada por um duplo movimento: o de fortalecer o próprio negro como sujeito da compreensão objetiva da realidade nacional e o de destituir o branco do “privilégio de ver sem ser visto”, provocando-o para fora de sua própria alienação.
O primeiro movimento, se iniciaria, segundo Guerreiro Ramos, pelo niger sum, pela identificação do negro com um “ser negro dialeticamente”, o que propiciaria tanto uma terapêutica individual como uma propedêutica sociológica que permitiria tornar perceptíveis as falácias da socioantropologia do negro então em voga no Brasil.
Isso porque esse movimento escancararia, do ponto de vista socioantropológico o que, para Guerreiro, parece ser a tese central quanto à falsa “questão do negro”: “o negro é povo, no Brasil. Não é um componente estranho de nossa demografia”. Inclusive por ser o principal componente demográfico deveria, segundo o autor, “ser erigido à categoria de valor, como o exigem a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente”.
O segundo movimento, ao qual Guerreiro atribui um sentido tático, seria passar a tematizar o branco brasileiro, não para que se estabeleça, segundo o autor, um “conflito insolúvel”, mas um enfoque das relações raciais desde um ato de liberdade do negro que resulte em uma liquidação de equívocos e que induza a uma paideia da sociedade brasileira.
Neste duplo movimento atacava o racismo brasileiro que, segundo ele, já em outro texto, “Patologia social do branco brasileiro” (1955), não recorreria somente à força, mas a um sistema de pseudojustificações, de estereótipos e processos de domesticação psicológica, que convergiriam, entre outras manifestações, na proclamação da excelência da brancura e na degradação estética da cor negra.
Mas a “patologia social do branco brasileiro”, seria mais complexa, uma vez que envolveria um protesto contra si mesmo, sobretudo nos brasileiros de pele mais clara, que, ao se alienarem a ideais e padrões estéticos exógenos, investiriam contra sua própria condição objetiva. Guerreiro chega mesmo a atribuir a assunção desses padrões a uma situação colonial temporária, que deve desaparecer com o progresso nacional.
Esse ideal da brancura, segundo o autor, embaraçaria o “processo de maturidade psicológica do brasileiro” e enfraqueceria a “integração social dos elementos constitutivos da sociedade nacional”. Nesse sentido, do ponto de vista propositivo, Guerreiro apostava em uma posição de “autenticidade étnica” sem legitimação de “romantismos culturológicos”. O combate ao racismo, nos termos colocado pelo sociólogo, portanto, constituía uma condição para a o avanço do próprio país enquanto projeto de nação soberana.
O que essa gramática, sob o exemplo da articulação das questões racial e nacional parece oferecer ao Brasil de hoje? Uma tentativa de mediação entre o que há de mais profundo em nós (no exemplo aqui exposto, o niger sum) e a busca de uma grandeza coletiva concreta, sem que com isso, ao mesmo tempo, precise se partir de uma posição de unidade imaginária que oblitere o conflito e a opressão ou que se capitule no espaço dos afetos ou da mera “resistência”.
Essa gramática também nos aponta que um tema, equivocadamente chamado de “identitário”, atravessado por uma série de injunções estruturais, como a questão racial, não pode ser diluído no simbólico ou mesmo “resolvido” pela falsa alegação de uma democracia inexistente. Ao mesmo tempo, sinaliza também que o “emotivismo” não consegue ser um defensor do combate efetivo às opressões presentes na sociedade brasileira, porque também perdeu a capacidade de articulá-la a grandes projetos nacionais.
Longe de recair, no entanto, sobre movimentos negros, de mulheres ou de pessoas LGBTQIAP+, inclusive destituídos de poder efetivo para fazer valer seus programas, nosso problema nacional, com as devidas e honrosas exceções, trata-se de uma mediocridade generalizada. Qual, afinal, o grande projeto nacional dos homens brancos e heterossexuais no poder para o Brasil de hoje?
Levar a sério as subjetividades, que estão aí para ficar, e as injunções estruturais que as atravessam, mas colocá-las no contexto de um projeto coletivo complexo e democrático, parece ser, portanto, um antídoto e um concorrente importante ao que eu prefiro, tudo considerado, chamar não de identitarismo, mas de “emotivismo”, como gramática redutora do pensamento progressista. Certamente, por outro lado, a leitora atenta deverá ter percebido os limites, os problemas e as datações da gramática de Guerreiro Ramos aqui esboçada. Mas creio que um nacionalismo antirracista e progressista, que comporta, uma antropologia filosófica rica (que Muryatan Barbosa chamou de “personalismo negro”) e, ao mesmo tempo, espaço para o reconhecimento do conflito e da construção de um projeto prático, merece ser melhor conhecida na quadra histórica na qual nos encontramos.
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