Publicado em: 7 de maio de 2025
Estava na Itália alguns dias atrás e, portanto, acompanhei os primeiros desdobramentos da morte do Papa Francisco. Li com atenção o que a imprensa europeia, particularmente a italiana, publicou e segui alguns dos fios da opinião pública. Confesso que fiquei surpreso diversas vezes. Primeiramente, com as tentativas de manipulação (negativa) da imagem do Papa por grupos políticos conservadores, num plano; e neofascistas, em outro. Além disso, fiquei surpreso como a imagem de Francisco e de seu ministério é mal compreendida pela maior parte dos campos progressistas da vida social – embora seja muito bem compreendida e assimilada por setores medianos da vida e do debate público.
Vou explicar isso tudo, mas é preciso dizer, antes, que não sendo particularmente habilitado para falar sobre política e geopolítica da Igreja Católica, o que escrevo aqui é produzido no contexto de uma observação em curso, meio sociológica, meio etnográfica e meio jornalística – uma vez que, como se diz, uma vez jornalista, sempre… E isso porque sou um viajante curioso, que tenta perceber que para além das máscaras de identidade há muita coisa acontecendo.
Parto de um fato. Durante os dias do funeral, em meio aos preparativos para a chegada de dezenas de chefes de Estado e outras autoridades, um muro de Roma, na via Nicolò Piccolomini, a dois passos do Vaticano, amanheceu com uma nova obra da artista visual de rua Laika: nela, o Papa aparece dizendo “Ma questi chi li ha invitato?” (Mas quem convidou eles?). Referia-se a gente como Trump, Milei, a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a primeira ministra da Itália, Giorgia Meloni e vários membros do seu governo, dentre os quais Matteo Salvini, ministro da Infraestrutura e Transportes e Matteo Piantedosi, ministro do Interior, todos eles críticos do Papa e opositores da sua política pró-imigração e de acolhimento dos refugiados. A ironia repercutiu bastante na Itália. Ela representava, ao mesmo tempo, tanto o poder e a influência de Francisco, ao trazer para seu funeral todos os seus grandes opositores, como a sua coragem.
Outro fato, que abriu um debate público na Itália, se deu em torno da tradicional comemoração do dia 25 de Abril, o dia da Libertação, uma data muito festejada no país, marcando a expulsão dos nazistas e que, este ano, completa 80 anos. A data coincidiu com o último dia de velório do Papa. O governo de Melonia, de franca inspiração facista e cheio de apoiadores neonazistas, sempre incomodados com essa data, tentou diminuir ou mesmo cancelar a comemoração, alegando o luto oficial em homenagem a Francisco. Porém, muitas lideranças políticas insistiram em manter os festejos, observando que o Papa prezava muito essa data. Com efeito, a coincidência das datas criou uma atmosfera de sobreposição simbólica, e muitos associaram, positivamente, os dois eventos – tanto que mais de 100 mil pessoas foram às ruas, em Roma, para festejar o Dia da Libertação e, juntamente com isso, em belas homenagens, lembrar de Francisco – que, por sinal, em discurso famoso, havia dito, anos antes, que “Todo dia é dia da Libertação” – e isso num contexto em que a direita italiana tentava, numa manipulação de sentido ambígua, mudar o nome da data para dia da Liberdade…
Esses dois episódios sugerem uma lição: o falecimento do Papa Francisco, inclusive mais do que o falecimento de um Papa, qualquer que seja, é muito mais que o fim de uma vida. Certo que toda morte é um evento complexo, que possui dimensões políticas e simbólicas na vida de uma família, mas, em seu caso, trata-se de um evento que coloca em causa a continuidade, senão mesmo o aprofundamento, do Concílio Ecumênico de Vaticano II.
Na verdade, diante da oposição, muitas vezes hostil e cínica, às suas obras e às suas heranças, compreendo que se torna imperativo que pessoas progressistas reconheçam e defendam o legado de Francisco, tragam-no para dialogar com questões amazônicas e que, em integrando fluxos reflexivos políticos, partidários ou sindicais produzam, em alguma medida, uma autorreflexão sobre a maneira como o pensamento progressista, também ele, muitas vezes forjado num anticlericalismo infantil, se recusa a reconhecer o papel desse Papa nas grande lutas do nosso tempo.
As notas que seguem caminham nesse sentido.
A dificuldade de categorizar Bergoglio
Nunca foi fácil categorizar Francisco. No começo do seu pontificado cresceu um rumor, sobretudo nos campos políticos progressistas, de que ele seria um opositor dos “peronistas de esquerda” Néstor e Cristina Kirchner. Muitos também recordaram que, durante a ditadura militar argentina, ele não teve uma ação política clara contra a ditadura. Porém a seu favor, surgiu uma voz poderosa, a do argentino Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz de 1980 e uma voz escutada e respeitada por milhões de latino-americanos (pouco no Brasil, país geralmente fechado para as vozes do continente). Pérez Esquivel sempre o defendeu e o apresentou como um Papa que daria continuidade às mudanças iniciadas no Concílio Vaticano II (1962-65), pelo Papa Angelo Roncalli, João XXIII.
Na verdade, quando pensamos em continuações, costumamos projetá-las num tempo curto, imediato. Nem eu mesmo era nascido em 1962… Como falar em continuações de coisas de mais de 50 anos atrás? Bom, esse é o tempo do Vaticano, da Igreja. É preciso ver que, mesmo na vida cotidiana, nenhuma continuação ocorre sem contradição.
Por sinal, vocês sabiam que o Papa Francisco considerou adotar o nome de João XXIV, para indicar a continuidade da obra de Roncalli? Em Roma, parece que todo mundo sabe disso. Então, se o próximo Papa adotar esse nome – ou algo como João Francisco I, ou Francisco II, não se enganem, a mensagem estará clara.
Porém, ainda assim, é difícil categorizar Bergoglio… Seu pontificado nunca se permitiu definir por categorias fáceis – o que, também, parece ser algo muito contemporâneo e que indica a necessidade de renovar – categorialmente – os campos políticos de todos os matizes.
Mas já categorizando: sua defesa dos refugiados – de todo planeta – foi retumbante
A principal mensagem política de Francisco foi a da necessidade de uma Igreja solidária com os refugiados políticos. Não foi à toa que a primeira viagem do novo pontífice ocorreu em julho de 2013, pouquinho tempo depois de eleito. Foi ao porto italiano de Lampedusa, onde milhares de refugiados ilegais chegavam ali diariamente. E isso em meio à midiatização massiva de outros milhares de refugiados que se afogavam no Mediterrâneo, tentando alcançar a Europa.
Não sei se vocês lembram desse momento, mas cabe recordar que o mais importante não foi nem a sua decisão de destino para essa simbólica “primeira viagem”, mas a sua homilia, a mensagem da sua homilia.
Nela, não hesitou em abrir uma franca oposição ao governo italiano. Denunciou a “globalização da indiferença”. Afirmou que essa forma de globalização nos torna “insensíveis aos gritos dos outros”.
Num contexto no qual o governo italiano se esforçava para construir um discurso se defendendo da obrigação de amparar esses refugiados, o Papa Francisco mencionou a insensibilidade dos governos europeus diante dos “imigrantes que morreram no mar, naquelas embarcações que, em vez de serem um caminho de esperança, eram um caminho de morte”.
Essa retumbante primeira fala pública inaugurou um novo modelo de Papa: a dos Papas corajosos e que não sublimavam a relação entre questões sociais e questões políticas. E Francisco passou os 13 anos de seu Pontificado mencionando a desumanidade da política europeia em relação aos refugiados e imigrantes.
O primeiro Papa de um mundo globalizado
Francisco foi o primeiro Papa global da história. Sigo, nesse sentido, o pensamento de Paolo Gentiloni, ex Primeiro Ministro da Itália, que, em entrevista ao Corriere della Sera afirmou que “Nell’epoca dei nazionalismi ruggenti è andato contro lo Zeitgeist, facendo un’operazione completamente opposta, globalizzando la Chiesa in modo a mio parere irreversibile” (Numa época de nacionalismo ressurgentes, caminhou contra o Zeitgeist, fazendo uma operação completamente oposta, globalizando a Igreja de um modo, a meu ver, irreversível).
É preciso compreender o que significa dizer “dimensão global”, no contexto da política de Francisco. Significa uma igreja que participa de um debate comum à humanidade e não somente aos católicos. Por que teria ido, o Papa, por exemplo, à Mongólia, país onde praticamente não há católicos? Simplesmente para passar a mensagem de que a Igreja Católica, como instituição mundializada e de influência global, sobre mais de 1,5 bilhão de pessoas espalhadas pelo planeta, tem o dever de falar sobre as grandes questões que impactam na preservação da vida no planeta. Em síntese, trata-se de perceber a construção política de um compromisso com a universalidade da mensagem Igreja.
João Paulo II foi um Papa que fez a Igreja viajar. Francisco foi, por sua vez, um Papa que globalizou a Igreja.
Na sua obra não se percebe, mais, tal como na construção política de João Paulo II, a proposição de ser um Papa do Ocidente e nem, como na de Bento XVI, de ser um Papa da tradição hermenêutica católica. Percebe-se, de fato, a ideia de de ser um Papa que dialoga com a humanidade. E essa perspectiva se expressa por meio de suas palavras, perspectivas, viagens e, também, em suas nomeações de novos cardeais.
É preciso perceber que Francisco fez um grande esforço de garantir, por meio da nomeação de novos cardeais, a continuidade da sua perspectiva política e o futuro de uma Igreja bem mais social, tolerante e contemporânea. Foram 108 cardeais criados por ele. 108 cardeais dentre os 135 que irão eleger o seu sucessor.
Não que esses números resultem, necessariamente, na eleição de um Papa progressista. O olhar de Francisco, nas suas nomeações cardinalícias, era mais em direção a uma maior representatividade do sul global do que no sentido de arregimentar forças progressistas.
Outro ex Primeiro Ministro da Itália, Massimo D’Alema, definiu Bergoglio como um “Pontefice che ha avuto una capacità senza precedenti di parlare ai laici e ai non credenti” (um Pontífice que teve uma capacidade sem precedentes de falar ao laicos e aos agnósticos) e afirmou, em 2018, numa declaração polêmica, que ele era o principal nome das esquerdas mundiais.
De minha parte, refletindo sobre isso, creio que a obra de Francisco é, na verdade, não apenas a obra de uma Igreja globalizada mas a obra que sugere a possibilidade de políticas progressistas globalizadas.
Continua….
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