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“ − O nome da canoa é “Deus te guarde”, do Moju. Venho
ver uma encomenda. […]
O tripulante, num átimo, trouxe a encomenda da senhora:
uma menina de nove anos, amarela, descalça, a cabeça rapada, o dedo na boca,
metida num camisão de alfacinha. A senhora recuou um pouco o leque dos lábios,
examinando-a:
− Mas isto? […] A menina fitava a senhora com estupor e
abandono. − Como é teu nome?… O teu nome sim. É muda? Surda-muda? Não te
batizaram? És pagôa? É, parece malcriada, parece que precisa de uma correção!
Fala, tapuru, bicho do mato! Ai, esta consumição…”
Foi
assim, citando trecho da obra “Belém do Pará”, do mítico escritor marajoara
Dalcídio Jurandir, publicada em 1961, que a
jornalista
parauara Danila Gentil Rodriguez Cal, professora pesquisadora da Universidade
da Amazônia (Unama), começou a apresentação de sua tese de doutorado i
ntitulada “Configuração Política e Relações de Poder no Trabalho
Infantil Doméstico: tensões nos discursos dos media e de trabalhadoras”,
defendida em 2014 e que acaba de conquistar o prêmio de melhor tese na área
de Comunicação do País, distinguida pelo Prêmio Compós de Teses e Dissertações
Eduardo Peñuela – 2015. O trabalho
foi orientado pela professora Rousiley Maia, na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
Danila
relata, com sinceridade desconcertante, que desde pequena se acostumou a ver
meninas morenas ou negras de vestido e chinelo cuidando de outras crianças. No
início da adolescência, nas casas das suas avós, acompanhou meninas com 14 ou
15 anos que trabalhavam enquanto ela brincava, via televisão ou curtia a
família. “Elas tinham seus próprios
quartos, sempre próximos à cozinha. Só hoje, ao escrever este texto, recordo-me
desse fato. Elas dormiam ali mesmo, bem próximas à cozinha. Ainda que tivessem
quarto próprio, o lugar dele era ao lado do seu local de maior trabalho, onde
lavavam louça, limpavam e ajudavam minhas avós a cozinhar. O restante dos
quartos, os dos filhos, em ambas as casas, ficam próximos à sala. Lembro que
uma das meninas corria para lavar a louça do almoço e seguir para a escola. A
outra, sei que estudava, mas não recordo se era à noite ou durante o dia
. O que eu ainda não tinha percebido é de onde
elas tinham vindo, o que esperavam da vida e o porquê de eu achar aquela
situação algo esperado para meninas pobres
.”
Danila,
até assistir à apresentação de uma pesquisa sobre o tema, na UFPA, não conhecia
o trabalho infantil doméstico como conceito, construído por organizações
sociais que lutam pelos direitos da infância. E daquele momento em diante essa
realidade a afetou de modo definitivo, modificou seu olhar de tal forma que se
engajou no enfrentamento a essa chaga social que para tantas milhares de
famílias ainda se trata de traço “cultural”.
Danila
casou, teve um filho e, no momento de voltar ao trabalho, quando precisou de
uma babá, recebeu ofertas de pessoas que diziam ter “meninas de confiança” que
poderiam ajudar. Viu amigas recorrerem a adolescentes para cuidarem de seus
bebês. “A cada visita ao pediatra ou ida ao supermercado, lá estavam as meninas
domésticas morenas ou negras cuidando de crianças”, relata, desvendando com
naturalidade o porquê de o enfrentamento ao trabalho infantil nas fábricas,
carvoarias e nas plantações ter sido reduzido através da fiscalização de governos
e ongs mas ainda permanecer o trabalho infantil doméstico, dificílimo de
erradicar porque se dá nos lares, sustentado por fatores históricos, culturais
e sociais ligados a questões de gênero e raça, por exemplo.
Parodiando
a vida real, que é sempre mais violenta, a literatura paraense tem vários
títulos que mencionam meninas levadas de municípios longínquos para realizar
serviços domésticos na capital Belém. O conto “Velas. Por Quem?”, da escritora bragantina
Maria Lúcia Medeiros – que sucumbiu aos 63 à esclerose lateral amiotrófica que
a acometia -, mostra a vida de uma garota que vive à mercê das “bulinações” dos
patrões, pai e filho, e que é passada “como herança” à filha da patroa quando
esta morre. A menina é retratada como aquela que teve a vida roubada e que
“aprendeu como cachorro de sítio a sair com o rabo entre as pernas repetindo
‘sim, senhora’”; ou é representada ainda como um “cachorro fiel”, sem condições
de reação ou contestação: “fatal foi tua mansidão de bicho: o búfalo, a corça e
o cão”.
Ao
pé do casarão mal iluminado fatal foi pensares que ofereciam vida nova, pois
ouviste os sinos. A família dormia ainda. Soubeste logo que havia menino, que
havia menina, um doutor e sua mulher a quem devias servir, branca e alta mulher.
(….) Mas ao ouvir a voz “Ó pequena”, desabalada era a tua carreira pelas
escadas, era a hora de retirar o urinol de porcelana com a urina da branca
senhora que ficou roxa um dia porque te pegou dizendo “pêra lá que eu vou tirá
o mijo da mulhé” e te trancou e quase te esmagou na porta para que consertasses
a língua, Ó pequena! Terias que dizer “fazer o meu serviço, cumprir minha
obrigação” aprendeste logo sem compreender.”
(Maria Lúcia Medeiros, Velas.
Por quem?, Belém, 1990).
Tarefas no lar podem ser experiências positivas para as
crianças, que assim aprendem sobre responsabilidade e partilha e ganham
habilidades práticas. Mas há diferença enorme entre ajudar nos afazeres
domésticos e o trabalho infantil doméstico propriamente dito, quando meninos e
meninas são os únicos responsáveis por determinadas atividades, por longo
período, em detrimento ao tempo de brincar e ao direito à aprendizagem, que a
herança escravista do Brasil banalizou.
Danila
salienta, em sua tese, que corrobora para a “invisibilidade” do problema a
ambiguidade da relação entre patrões e a menina agregada, que oscila entre ser
serviçal ou se sentir parte da família. Em relação às meninas, há a expectativa
por parte dos empregadores de que a condição de servidão se perpetue. Ela se
deparou com esse tipo de comportamento em sua pesquisa de mestrado, quando
entrevistou patroas a respeito do trabalho infantil doméstico, todas de classes
média e alta, que admitiram a Danila, por exemplo, saber que impedir o
crescimento profissional da menina não é correto; contudo, reconheceram não
desejar que “boas empregadas” gozem de realizações pessoal e profissional
porque têm medo de perder a criada, o que justificaria restringir as
possibilidades “daquela pessoa de ser mais alguma coisa”. Em um grupo de
entrevistadas, uma delas relatou que a mãe tinha o costume de batizar meninas
do interior para que pudesse trazê-las para criar na capital, ainda crianças, de
modo que iam se acostumando àquela família, eram “colocadas do jeito da gente”,
e iam passando de geração em geração até que não pudessem mais servi-los ou que
morressem.
“Dar
uma ajuda”, “reparar menino”, “crias da casa”, “meninas da casa”, “afilhadas”, os
nomes remetem sempre à mesma situação. A criança chama a patroa de tia, de
madrinha, trabalha, ganha comida e roupa.  Trabalho infantil e análogo ao escravo. Assim
se evidencia a exploração silenciosa de gerações de crianças desvalidas, de tal
modo engendrada que as próprias vítimas não percebem a sua condição.
No
Brasil, desde 1990 está em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
que considera meninos e meninas sujeitos de direitos e deveres, divide a
responsabilidade entre a família, o governo e a sociedade pela proteção a
crianças e adolescentes e estabelece o princípio da prioridade absoluta para a
infância e adolescência nas políticas públicas.
A
Emenda Constitucional nº 20/1998 proibiu o trabalho de meninos e meninas com
menos de 16 anos, salvo a partir dos 14 na condição de aprendizes. Além das
Convenções da ONU, duas Convenções e uma Recomendação da OIT, das quais o
Brasil é signatário, regulam o trabalho infantil. E o governo brasileiro
incluiu o trabalho infantil doméstico dentre as piores formas de trabalho
infantil, via Decreto nº 6.481/2008. Foram então criados programas federais de
combate ao trabalho infantil, como o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI), de 1996, e o Bolsa-escola, de 2001.
Mas
a realidade brutal permanece.
“__Na casa de família que tem patrão nojento. Ele vem, a
gente está lavando uma louça, ele vem esfregando aquela coisa nojenta dele
atrás da gente. Disfarça para pegar uma xícara ou um copo só para estar tirando
casca da trabalhadora doméstica. E ninguém vem dizer que isso nunca aconteceu
porque acontece, entendeu? E assim trabalhei muito na casa de… Até de
advogado, eles tiram graça com a cara da gente e ainda dizem assim: “se tu
falar alguma coisa tu sabes o que vai te acontecer! Eu sou advogado!”
“– Então, o meu sonho é me formar em direito, mas na
defesa do trabalhador doméstico. Hoje, eu tenho um filho de estupro, de patrão,
não é? Meu filho mais velho e eu amo meu filho, meu filho não tem culpa do que
aconteceu, até porque ele [o ex-patrão] pediu que eu abortasse a criança. E eu
sempre tive uma consciência que na vida você tem que passar por muita coisa,
entendeu? E, hoje, o meu filho é tudo que eu tenho, é uma coisa maravilhosa,
ele trabalha com dedetização e tudo que ele faz é em prol da mãe dele
.
(Zezé, uma das entrevistadas por Danila
Cal
)
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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