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O livro “Brasil no Espelho”, recentemente lançado e tomado como pauta “jornalística” número um de redes como a Globo, traz uma análise que embora não aprofunde processos que aprendi como fundamentais, como a psiquê colonial, ajuda sim a chegarmos lá se olharmos com a devida criticidade científica.

Oficialmente o livro parte de uma pesquisa sobre como os brasileiros se veem como Sociedade e como essa imagem introjetada influencia a política, a economia e os conflitos contemporâneos do país. Trabalho da equipe liderada por Felipe Nunes, cientista político e pesquisador de opinião pública(Quest).

O ponto principal é a tese de que “o Brasil vive uma crise de identidade coletiva, e que essa crise é fundamental para entender a polarização, o avanço do radicalismo e a transformação do sistema político” como se este processo não fizesse parte de uma história e contexto geopolítico e econômico global.

O “espelho” é a metáfora para a forma como o brasileiro enxerga a si mesmo e ao país — e como essa imagem influencia suas escolhas políticas e econômicas, ou seja, o que “consome”. Mas provoco ao abordar a metáfora com o contexto da Branca de Neve, “Espelho, espelho meu…” quando a belíssima, pelo olhar dos súditos, mas de fato bruxa, queria certificar-se, insegura, que continuava a controlar a percepção subjetiva de seus subordinados…

O primeiro destaque positivo do trabalho em foco é a importante constatação da estratégia da Fragmentação da Percepção da realidade para o processo de dominação consentida, e até desejada, pelos colonizados, em particular suas elites econômicas que não se identificam nem com seus iguais nem com seu lugar e papel no mundo, os mamelucos, como diria Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, quando se referia aos escravos que caçavam e açoitavam os irmãos de raça, para se credenciar com os colonizadores e ganhar umas migalhas a mais.

O fato de hoje sermos a nação com o 10º maior PIB do planeta. O PIB, Produto Interno Bruto, não mede desenvolvimento, mede a capacidade de trabalho, de produzir da nação. Desenvolvimento é qualidade de vida, e quando somos medidos pelo IDH(Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU, nos encontramos no 84º lugar. Não se trata, portanto, de um erro, mas do resultado de sucesso do projeto que nos submete.

A fragmentação do conhecimento, trabalhada em disciplinas por Renê Descartes(sec XVII), quando não articuladas entre si, transdisciplinarmente, não deixa os dominados/colonizados perceberem a relação sistêmica entre a educação com a cultura, com a natureza, a geografia, a economia, a política, a filosofia, a antropologia, a sociologia, a administração, a psicologia, com a ciência das ciências, a História – a síntese da experiência. Sem uma síntese sistêmica, histórica, a percepção fragmentada tende a diagnósticos no mínimo incompletos e daí a soluções inadequadas, parciais ou insustentáveis, até desumanizadoras.

Nunes argumenta que esta fragmentação trabalhada faz o brasileiro ter dificuldade de construir uma identidade enquanto nação. Convivem visões muito diferentes sobre: justiça, meritocracia, papel do Estado, moralidade, democracia. Só para ficar entre os conceitos mais debatidos nesta conjuntura. Um sonho nacional, um projeto de Sociedade, o que o país “deveria ser”, que nos identifique e unifique não é trabalhado, trazendo a fragmentação para uma conflagração da “guerra de todos contra todos” onde só ganha o “mais forte” e quem não é daqui.

Segundo Thomas Hobbes – filósofo que sustentou o cruel Estado Absolutista e que utilizou a expressão “guerra de todos contra todos” em sua obra clássica “Leviatã”, publicada em 1651, essa estratégia é antiga – é justamente para escapar dessa condição caótica que os seres humanos, por medo, concordam em aceitar um contrato social de cima e apoiar um Estado “forte” esperando garantir a paz e a segurança “coletiva”, que jamais se confirmou na História. A cada solução simples e autoritária, maior centralização da riqueza. Confira em “O Capital no século XXI” de Thomas Piketty e em “Sapiens” de Yuval Harari.

Do ponto de vista da psicologia política do brasileiro, a pesquisa sugere alguns padrões de comportamento: 1. Alta ansiedade social, especialmente entre jovens. 2. Medo do futuro como motor de escolhas. 3. Busca por líderes fortes como resposta à insegurança(Leviatã, o monstro salvador). 4. Desconfiança generalizada em instituições, mídia e partidos e entre as próprias pessoas – hiperfragmentação psicossocial.

Um ambiente para propostas fáceis e vazias, populistas e polarizadoras, a partir de informações impactantes, sem checagem(fake news), que diante da fragmentação da percepção promove graves dissonâncias congnitivas que se projetam na razão a partir das dimensões afetivas (sensação de satisfação e segurança) e psicológicas (traumas e obsessões, às vezes inconscientes) dos seres humanos, cada um individualmente processando os ambientes coletivos em que convive e a partir do que decide, escolhe, consome, seja na economia, na política, na cultura, na dimensão existencial religiosa etc…

Um projeto sofisticado que brota na educação (quem educa, educa para…) muito além da escola, chegando ao mesmo tempo em que oferta ferramentas de Inteligência Artificial elevando o patamar da alfabetização social e técnica, à condição de 17% dos universitários brasileiros serem analfabetos funcionais, aqueles que até lêem, mas não entendem, não conseguem tirar lições para sua vida prática e elaborar daí, novas soluções. Segundo o Instituto Paulo Montenegro e ONG Ação Educativa(2024).

A pesquisa liderada por Felipe Nunes, aqui em foco, demonstra que: as decisões econômicas e políticas das pessoas em uma Sociedade, não são construídas apenas racionalmente. Daí chegarmos ao neuromarketing. Emoções como raiva, medo e ressentimento são determinantes. Tanto o afeto, aquilo que afeta as pessoas, quanto a psiquê inconsciente dos indivíduos, mas passíveis de serem influenciadas, tal como fundamentada na Teoria de Campo de Kurt Lewin, fazem parte de estratégias de ordem política e econômica, a partir da “livre” escolha dos indivíduos. Votar e comprar é o centro da estratégia, é o que sustenta a ordem, o normal, o que é certo. Lembra do filme Matrix (I), de 1999? Reveja.

A polarização política, no país do futebol, divide a nação como divide torcidas. Não por escolhas racionais a partir de uma estratégia de nação. Mas porque torce pelo time – complicado assim. O espelho reflete “ecosistemas informacionais separados”: narrativas paralelas, percepções de realidade distintas, tribos políticas. Isso dificulta consensos e aumenta conflitos.

As pessoas não percebem a profundidade histórica, mas a disputa é entre projetos de Sociedade em nível global. Mas que passa obviamente pelo protagonismo de cada nação em seu posicionamento geopolítico e econômico.

Segundo a pesquisa, no espelho, os brasileiros veem dois “Brasis” competindo: um que valoriza ordem, tradição e religiosidade; outro que valoriza diversidade, direitos e justiça social. Mas a escolha é determinada não por consciência científica, histórica, mais por afetos e traumas.

O espelho revela uma coisa muito grave, o apoio à democracia existe, mas é raso; cresce a tolerância a soluções autoritárias em momentos de crise; há fadiga com instituições e com a política tradicional. Digo, é preciso inovar a convivência.

Nas conclusões a equipe da pesquisa propõem: 1. O Brasil precisa reconstruir seu “espelho”, ou seja, um projeto comum de nação. 2. Fortalecer instituições legítimas, melhorar a qualidade da informação pública, criar políticas que reduzam desigualdades, resgatar a confiança social, incentivar o diálogo entre grupos polarizados. Por mim, o Protagonismo não é uma opção, mas obrigação.

João Tupinambá Arroyo
Doutor em Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente e mestre em Economia pela Universidade da Amazônia, onde está pró-reitor de Pesquisa e Extensão. Pesquisador e militante da Economia Solidária desde 1999, 9 livros publicados, todos acessíveis como ebook. Pedidos para arroyojc@hotmail.com. Siga @joao_arroyo

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