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Apesar de, às vezes, achar que não lembro mais de um mundo sem a Wikipedia, ainda existi em um tempo em que recorri inúmeras vezes a uma enciclopédia raiz, com seus pesados livros de imponente capa dura, para fazer pesquisas escolares, para escrever trabalhos muitas vezes apresentados com a ajuda de colagens em cartolinas ou maquetes de isopor. Não tenho saudosismo deste lado analógico de pesquisar da minha infância. Do trabalho manual até que tenho, acho que foi lá que começou a brotar qualquer coisa de interesse artístico. Enfim, sou completamente a favor do uso e dos avanços da tecnologia para facilitar o acesso ao conhecimento. Aliás, lembro bem de ler a série do Guia do Mochileiro das Galáxias – não sei se antes de existir a Wikipedia, mas certamente bem antes dos iPads e tablets que hoje em dia são tão comuns até como cardápio de restaurantes – e sonhar com a maravilha que seria ter, a qualquer momento, toda a informação do universo disponível através de um toque dos dedos numa tela. Douglas Adams pensou nisto no final dos anos 70 e os habitantes do planeta Terra só tiveram acesso três décadas depois, em meados de 2010 (e sem o maravilhoso letreiro de “capa” com os dizeres “NÃO ENTRE EM PÂNICO”, o que, obviamente, torna tudo muito mais chato).

Disse tudo isto para atestar uma incongruência enorme da minha parte: apesar de ler maioritariamente no kindle ou no iPad durante toda a minha vida adulta, pelo menos, sinto um prazer inenarrável em ler um livro de papel, um luxo sensorial que poucas vezes me permito pela falta de espaço, e praticamente sempre em decorrência da impossibilidade de uma versão digital. Por causa disto, estou neste exato momento em um impasse: se compro a versão impressa ou digital da Enciclopédia Negra, organizada pela historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcs, pelo historiador Flávio dos Santos Gomes e pelo artista plástico Jaime Lauriano, que compila um livro de verbetes representando personagens negras apagadas, silenciadas e/ou diminuídas da história brasileira em razão de sua cor de pele e uma exposição das peças originais das artes que ilustram o livro. Muito white people problem, eu sei. Podem revirar os olhos.

Deste lado do Atlântico, às vezes, me perco mesmo e inclusive em ondas digitais e não consigo acompanhar tudo o que acontece nas bandas de lá, então com certo atraso estou em estado de paixão fulminante por este projeto depois de ver a exposição, que está na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, onde desenvolvo o meu doutoramento, e de assistir a palestra da Lilia e do Jaime sobre ela. Desculpem a intimidade com que me atrevo a tratá-los, mas acho que os dois são daquelas pessoas que deixam seus ouvintes totalmente à vontade enquanto sorvem deles conhecimento. Não foi a primeira vez que tive a oportunidade de ver e ouvir, ao vivo, a Lilia a falar, e qualquer elogio que eu faça a ela é completamente insignificante, certamente não vai ser a minha opinião que vai validar a importância do trabalho desta mulher para a cultura e o saber daquilo que nos habituamos a chamar de Brasil – como muito pertinentemente faz questão em pontuar Jaime. Ah, fazendo um parêntese rápido, preciso partilhar o que o Jaime contou sobre como foi para ele fazer parte da Enciclopédia Negra. Em um jantar de lançamento de outro projeto, Lilia e Flávio, ao meio aos comes e bebes e clima de confraternização, o convidaram para ser um dos organizadores do projeto e finalizaram com a seguinte frase: “e a resposta é sim”. Jaime, artista de trinta anos, na altura, sem nenhum envolvimento acadêmico, diante de dois dos maiores pesquisadores do país, panicou. Mas obedeceu. E que bom que assim o foi. Lilia e Flávio sabem muito bem o que fazem. Eu só queria ter visto a cara dele naquele exato momento.

Lilia contou que um dos parâmetros estabelecidos para a Enciclopédia Negra foi que cada Estado deveria ter pelo menos uma personagem. Quando adentrei na exposição, meu olhar foi certeiro na direção do quadro que representa o Preto Félix. Caramba, meu sangue cabano vibrou. Só conseguiria ficar mais feliz se fosse uma cabana mulher. Um passo de cada vez. Por hora, o destaque de uma figura não-branqueada já é uma contribuição de grandiosíssimo valor e a Enciclopédia Negra evidencia a necessidade de martelar que o engajamento da população negra escravizada na Cabanagem, comumente negligenciada, não foi apenas um impulso de rebeldia, mas uma luta consciente pela liberdade, organizada e politicamente orientada, como apontou o Vicente Salles no livro “O Negro no Pará”. A partir do momento em que negros, negras e negres começaram a identificar o conceito de liberdade como decorrência de uma luta política, foram atraídos para o levante geral tanto pelos seus líderes quanto pelo exemplo internacional de lugares como Caiena (a abolição da escravatura nas colônias francesas). Esta organização foi percebida pelo governo, que reagiu com atos proibindo ajuntamentos e atitudes políticas da população escravizada aderente ao partido de Batista Campos, líder cabano, identificados pelo uso de distintivos vermelhos.

Imagem: Companhia das Letras / Reprodução

Preto Félix comandou um dos episódios mais sangrentos da Cabanagem quando liderou mais de quatrocentas pessoas em uma revolta na região do Acará, perto de Belém. Coincidência do destino, quem o retratou para a Enciclopédia Negra foi justamente Jaime que, como organizador, a priori, não queria participar como artista de jeito nenhum. Mas uma vez o caçula do grupo foi convencido pelos seus pares. Que bom, de novo. O desenho de um homem sem rosto feito com pemba branca (giz usado em rituais na Umbanda) representa um movimento silenciado de uma região inteira até hoje esquecida, oprimida em um tratamento colonial interno duro que parece não ter fim. Lilia enfatiza que, apesar de terem incluído nomes como Zumbi (que, aliás, não sabemos se foi só uma pessoa), nunca foi intenção da Enciclopédia Negra alimentar o discurso do herói e sim de reparar o papel fundamental de milhões de pessoas arrancadas de suas terras e obrigadas a construir uma nação desempenhando as mais diversas funções. O intuito sempre foi dar uma face àqueles que a historiografia oficial renegou através da sensibilidade de artistas aos quais foram impostas a continuação de suas lutas por causa de sua ancestralidade.

Lilia reflete sobre a palavra reparação, que vem de reparar, que significa “restaurar”, “restituir”, assim como “olhar”. Para consertar algo é preciso, antes de qualquer coisa, ver as mais diversas nuances, principalmente aquelas deliberadamente apagadas. Me deleito com as coisas que diz a décima primeira mulher eleita e empossada na Academia Brasileira de Letras, que tão conscientemente utiliza uma vida inteira a sua condição de privilégio de mulher branca, de ascendência europeia, educada formalmente nos moldes da academia ocidental, para trazer à tona histórias ocultas, pessoas silenciadas, lutas interseccionais, mas sem perder a ternura de quem enxerga a arte onde esquecemos de ver.

A Enciclopédia Negra vai estar até outubro na Escola das Artes, no Porto, e depois segue para a Católica de Lisboa. Esta foi a primeira vez que as mais de cem obras saíram do Brasil. A exposição faz parte do acervo da Pinacoteca de São Paulo, foi doada por seus organizadores e todos os artistas envolvidos, que entenderam a importância das obras permanecerem agrupadas e tornarem-se patrimônio público do povo brasileiro. E muito está enganado quem achar que todo este projeto, que demorou sete anos para ser concluído, foi pensado para um público de universidade ou dito intelectualizado: ele foi idealizado para crianças dos ensinos básico e fundamental. Está aí a semente mais forte para que futuras Enciclopédias venham, para que o Brasil não tenha mais um enorme passado pela frente, como disse Millôr.

Lilia Moritz Schwarcz e Jaime Lauriano

Foto: Escola das Artes / Reprodução

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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