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Foi difícil engolir qualquer coisa hoje. Barraram Milton Nascimento de sentar-se na área principal do Grammy porque era destinada só aos artistas que a organização queria que aparecessem na foto. O Milton fucking Nascimento que, segundo Elis Regina, se deus cantasse, seria com a voz dele. Aquele que mundia, que deixa Chico Buarque completamente boquiaberto, em transe, encantado, com o cantarolar que antecede “O Que Será”. Milton, o gênio que ensinou a tanta gente – inclusive eu – de tantas gerações o que é arte. Consigo pensar em alguns internacionais, ainda vivos, de genialidade do mesmo naipe que Bituca, tipo o Paul McCartney, o Bob Dylan, a Carole King. Com uma voz comparável? Já se foram Nina Simone, Freddie Mercury, Mercedes Sosa… Hmmm…

Tive a oportunidade de assistir um dos seus concertos de despedida, na Casa da Música do Porto, em Portugal, e aprender que um segundo de silêncio de Milton equivale a uma eternidade de música. Outro dia comentei sobre a minha brasilidade seletiva em relação à Fernanda Torres e toda a sua jornada brilhante nas grandes premiações internacionais de cinema por sua atuação em “Ainda Estou Aqui”. Ver uma estrela da potência de Milton Nascimento ser esnobada na gringa desperta o pior lado que pode haver deste sentimento de pertencimento que só surge quando me convém. Por que diabos Bituca precisaria da validação de um grupo de estadunidenses?

Vem à minha cabeça a única expressão possível neste momento, um sonoro “foda-se”, porém na voz e com o sotaque da Maria Teresa Horta, que se foi deste plano exatamente hoje, aqui perto de mim, em Lisboa, aos 87 anos. Milton foi uma das vozes contra a ditadura no Brasil. Maria Teresa, que da luta contra a ditadura em Portugal fez poesia. “Jornalista é a minha profissão, escritora é quem eu sou”, sua célebre frase. Apanhou na rua e foi presa, ao lado das co-autoras de Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. Feministas antes de sequer se tocar no assunto em Portugal, a prisão das “Três Marias” foi inclusive tópico da primeira Conferência Internacional Feminista de Planeamento, nos Estados Unidos da América (EUA), em junho de 1973.

Quando era criança, o pai de Maria Teresa queimou os seus livros por achar que era impróprio uma menina ler. Desobediente, comunista, poeta, uma das cem mulheres mais influentes do mundo, segundo lista da BBC. Foi-se. O Milton, ele ainda está aqui. E se o mundo é esse lugar escroto onde se esnoba Milton Nascimento, preto e da América do Sul, para abrigar um rapper estadunidense que claramente objetifica a nudez da própria mulher, esvaziando toda a luta por direitos e equidade das Marias que já se foram e das outras que ainda estamos aqui, obrigada mel dels por não fazer parte desta patota.

E lá se vai mais um dia…

Foto: Maria Teresa Horta por Sebastião Almeida

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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