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Como se sabe, o Pará é terra de muita visagem. Fantasmas há em casa, praça, rua, beco e rio. E em taxi, barca, praia, vão de igreja e até em cima de árvore. Por todo lado se têm alguma história de visagem e não há gente, família ou cão que não a tenha.
“De visagem e doido toda família tem um pouco”, como dizia tia Carmem Dolores, comadre de meus avós, personagem maior de minha infância, sempre muito prudente, mas sábia de que as coisas do outro mundo imiscuem-se nas aventuras deste mundo.
Conheci grandes contadores de história de visagem. Dentre eles, a Maria, secretária na casa de minha avó Nida, especialista em visagem de interior (as mais pavorosas, porque implicam nesses ambientes aterrorizantes que são a floresta e o rio); a Luiza, também vinda do interior, que me persuadiu de que jamais deveria colocar os pés na gloriosa vila da Vigia, sob o risco de atrair visagens mal intencionadas; o Dukita, mestre de obra muito amigo da família, que tinha particular afeto pelas assombrações públicas, dessas que dão em praças e ruas, sempre vistas por muita gente e causadoras de comoções sociais que muito lhe impressionavam e que foi quem me contou a pavorosa história da porca assombrada do Reduto, uma que surgia de dentro do canal da Almas para atemorizar a humanidade e, não podendo estar ausente dessa lista, tia Carmem Dolores, sourense apaixonada pelos contos urbanos belemenses, que falava de fantasmas de casa, família, firma e festa, penetrando lentamente na alma das maldições familiares, tão comuns em Belém, e, por via delas, nos desatinos de gente triste, ensimesmada, fugida, transubstanciada e enforcada.
Nesse repertório de narradores também devo incluir alguns que não contavam e nem descontavam histórias de visagem, uns meio-narradores, que não gostavam de abalar sua posição social num mundo de gente racional, com essas evidências curiosas do outro-mundo. Trata-se de uma categoria importante a destacar, mais pelo fato sociológico de que sugeriam certa vergonha de validar o espiritual, ao mesmo tempo em que pareciam depender dele completamente. Nessa categoria eu poderia incluir, por exemplo e dentre muitos, tia Alice Monteiro Esperante, minha tia-avó, que narrava história de visagem colocando sempre uma suspeição e rindo-se delas, mas jamais as demistificando verdadeiramente, dominando como ninguém essa zona temerária que existe entre a razão e a irracionalidade. E também a querida tia Lúcia Bezerra, que sempre dizia,
“Acreditar a gente não acredita, mas sabes como é, são coisas que se conta bem contadas”.
Além desse repertório de narradores, tenho também, por evidente (sic), um repertório de histórias, de contos, contas e casos. Não, não contarei aqui nenhum deles, porque eles dão um livro inteiro de contos de visagem (fica o compromisso), mas não posso deixar de citar, enciclopedicamente, os casos de assombração, visagem e avantesma que me nutriram a imaginação em minha infância e juventude.
Começo pela lista dos fantasmas que deram a aparecer na minha família: o Orelhudo, fantasma meio ridículo que frequentava a casa dos Horácio, na avenida Generalíssimo Deodoro, à meia quadra do largo de Nazaré, que carregava uma vasilha de barro e sussurrava que queria mingau, sendo seu pitoresco o fato insólito de ter orelhas muito, muito grandes; o fantasma inconveniente do Caboclo Cospilhão, dos meus parentes Calandrini e Fonseca, que passava de casa em casa dessas famílias, procedendo com escarros verdes, que se materializavam como limo nas pedras da rua e dos muros; o fantasma da escrava Filipina, uma desarvorada que adorava difamar meus parentes Horácio e o avantesma da Maria-nem-me-digas, uma moça com cara de assustada, que surgia de dentro dos baús dos meus parentes Castro, gostando de assustar as crianças da casa e que sempre punha as mãos emoldurando as faces e abria a boca surdamente enunciando um longo “Ooooooo”.
O nem me digas dessa Maria-nem-me-digas se deve a seu ar pas-grave e ingênuo, de quem estava sempre surpresa, como se dissesse,
“Nem me digas, nem me digas!”
Isto posto, sim, evidentemente devo observar que a grande maioria dos fantasmas se presta ao ridículo, inclusive quando se trata de sobrenatural maldoso – constatação que nos faria rir sempre, nos filmes de terror, se não fosse esse apelo dramático do susto, do inesperado e, sobretudo, do saber que estamos em meio a uma cultura de susto e de assustados.
Pois bem. Mas há, ainda, os fantasmas da lista que fiz para assinalar aqueles que não pertencem aos limbos da minha família, agravando-se alhures, em muros, saias, salas e salões da ciência pública.
E já nem falo dos grandemente conhecidos, como o de Josephina Conte, o de Maria Macambira – essa bruxa azulada do Baixo Amazonas – e de outros similares, mas daqueles que assombram Belém telhado por telhado, adentrando onde não deviam e nem foram convidados, com suas longas mortalhas brancas e azuis e suas vocações ao destino indestinado.
Refiro-me aqui à porca do Reduto; ao réptil melancólico; ao padre-branco da Cidade Velha; ao vesgo-de-capote do velho largo da Salvaterra; ao fantasma pelado de São-Joãozinho; aos sinos assombrados dos Alexandres; à vampira de Icoaracy; à mulher de branco do Lago Azul; às muitas e muitas matintas da Campina; aos doze enforcados do largo da Pólvora; à visagem de Cecília Chermont; ao avantesma de Maria Falcman que surgia no largo da Memória; ao boto-branco do Arsenal; aos rasga-mortalhas do Mosqueiro; ao cão diabólico que comeu os pés do dr. Matta Bacellar; à barca fantasma da rampa da Sacramenta; ao arranca-olhos da feira de Santa Luzia; ao médico demente de Nazaré; ao irmão-marista desencarnado; à visagem do Espia-tripa da casa Perdigão e, ainda, ao pior de tudo que era o nem-te-conte da fúria da besta-solta de quando, no dia das almas – que é segunda-feira – se abrem os portões do cemitério da Soledade para que tudo que é morto mal-conformado se ponha, enquanto durarem as velas que lhes iluminam, a circular pela cidade e a acertar as contas de seus muitos passados.
Fantasmas de alta e de baixa patente. Perdidos e reencontrados. Gentis e pérfidos. Solícitos e emputecidos. Melancólicos e algazarrentos. Pios e blasfemos. Cristãos e pagãos. De tudo um pouco e um pouco de tudo, a fazerem de Belém, provavelmente, um incômodo lugar para se viver.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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