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Era crença, em casa de meus bisavós, que minhas tias não se casaram em função da escrupulosa vigília moral que meu pai, desde os cinco anos de sua idade, lhes infligia. Era recomendação da minha bisa, a sua avó Dica,
“Luiz, fica de olho! Se algum pelintra se atirar demais, tu me avisas. Se ele ousar, tu já sabes…”,
E lá ficava meu pai a vigiar as tias, envaidecido da sua responsabilidade, enquanto a bisa Dica ia cuidar das suas tarefas na casa.
A primeira guarda era a da janela. Havia o grande janelão em forma de ferradura que acomodava facilmente as quatro moças – mais a Elvira, de contrapeso –, ladeada por duas janelitas ogivais, numa das quais o meu pai se posicionava, tal como os destemidos vigilantes de almeias magras do tempo de Ivanhoé.
Por lá passavam os pretendentes, em geral à meiga luz das horas vespertinas. Passavam, iam até a esquina, retornavam, cumprimentavam com discretos acenos de chapéu ou, eventualmente, com sorrisos e até mesmo, no caso de não terem sido razoavelmente educados, com olharezinhos maliciosos.
E meu pai tomava notas. Notas verbais, que ainda não sabia escrever. Notas de tudo. E com pontos de exclamação!
“Este ousou. Aquele, ousou um pouco!”
Meu pai exacerbava: “A Dinda suspirou quando o sujeito passou na calçada pela segunda vez!”, narrava para a bisa Dica, balançando a cabeça, assertivo de seu bom juízo.
“Ah se ele ousasse!, respondia a bisa!”
Sim, o rebanho das manas de seu pai estava sob seu controle e ele se fazia o preclaro juiz da virtude familiar.
E fora isso tinha a segunda guarda, a dos pretendentes já declarados, aquando eram permitidos à sala de visitas.
“Luiz, repara bem, qualquer coisa me chama, viste?”
Vai ousar? Vai? Não vai?
Nessas ocasiões o pretendente e uma de minhas tias-avós dividiam o mesmo sofá, embora com, ao menos, dois palmos de intervalos entre os corpos – intervalo esse que meu pai aferia escrupulosamente. E meu pai tomava assento bem à frente deles, os olhos que nem piscavam, a testa franzida, com ares de pastor alemão.
E, a qualquer deslize de uma das partes, meu pai berrava:
“Avóoo”
E era coisa de um segundo para a bisa Dica aparecer,
“O que há?”
“Ele sussurrou-lhe alguma coisa que não ouvi!”
E a bisa Dica: “Nesta casa se fala alto e claro, que não tem espaço para segredos em uma família decente, estamos entendidos? Porque, se for assim, começamos muito mal!”
O pretendente se encolhia, envergonhado da bronca. Mas, passados quinze minutos, já novamente se aventurava.
E meu pai não dava trégua:
“Avóoo”
E voltava a bisa, já impaciente:
“O que foi desta vez?”
“Este homem tentou, tentou não, ousou, tocar na mão da minha tia!”
E a bisa Dica fustigava o infeliz com um olhar devastador. Ele, porém, ainda tentava argumentar a seu favor evocando a inocência do espião,
“Não foi bem isso, dona Dica, o menino não viu direito…”
“Ah! O senhor está insinuando que meu neto está mentindo?”
O pobre noivo, quase tremendo de vergonha, estando já por desistir…
E meu pai triunfando, lá consigo pensando,
“Esse aí se julga mais esperto do que eu, coitado!”
Isto quando não era o caso – o que com frequência acontecia – de tentarem subornar meu pai com uma moeda reluzente,
“Menino, tu não queres correr lá na esquina para comprar umas paciências? Vais e voltas num pulo!”
Mas quando!, que meu pai era mais do que escolado. Aceitava a moeda e dizia ao pobre,
“Muito obrigado pela gentileza. Irei sim, mas quando tu fores embora!”
E o velhaco ainda tentava persuadir meu pai,
“Achava melhor se tu fosses logo, porque depois pode não ter mais paciências. As que se vendem lá são tão boas que logo são vendidas, acabam num minutinho!”
Meu pai pausava um momento, produzindo no velhaco a impressão de que estava a refletir e a se deixar convencer pelos argumentos interpostos. Mas o fazia apenas para criar uma expectativa no pobre casal, porque logo berrava:
“Avóoo!”
E lá se vinha dona Dica, já cansada, tanto do noivado impertinente como do excesso de zelo do guardador de seu rebanho,
“O que foi, desta vez?”
E meu pai lhe mostrava a moeda polida, brilhando à contraluz, enquanto passava o relatório:
“Este milionário tentou me subornar, avó!”
De fato, era demais para minha bisavó.
“O senhor não tem vergonha? Onde já se viu? Meu marido será informado do ocorrido, o senhor pode ter certeza. Olívia, já para dentro!”
O noivo ousado se encolhia, se punha a suar frio, a um pico de se urinar de medo, descoberto num ato vil.
“E o senhor, rua! A porta de saída é a sua serventia nesta casa!”
Meu escrupuloso pai sorria, todo satisfeito, e se calhasse ainda ganhava uma outra moeda reluzente dos bolsos de minha bisavó.
No resto da tarde ouvia-se o choro soluçado de minha tia-avó, mas meu pai era sempre perdoado, e as tias até se riam dele. Mas contavam que era por sua causa que não se casaram e que a tia Odila até virou freira.

(Esta crônica é uma variação sobre um tema de Antônio Lobo Antunes. “Variação sobre um tema” é uma prática comum em música e gosto de experimentá-la em literatura. Na imagem, meu pai, Luiz Fernando Horácio Castro, aos 6 anos, Belém, 1950)

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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