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Houve noites de São João em que eu era muito menino: ficava com sono muito cedo, não via a fogueira queimar, perdia o voo dos balões e perdia o mugunzá. Era tipo o que dizia Manuel Bandeira:

“Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas”

Depois disso, mais grande, houve um tempo em que, na noite de São João, eu morria por namorar, mas não sabia – ainda – namorar. E inda não tinha quem me ensinasse… Não sabia pegar na mão, não sabia beijar “de verdade”, não sabia falar bobagem.
Mas tinha uma menina… Ela estava pronta para ser namorada, mas eu não estava pronto para namorar. Meninas amadurecem mais cedo…
E esse drama do passado me acompanha até hoje…
Porém, ocorreu um episódio. Naquela noite de São João ia ter, lá onde eu morava – o Lago Azul – como todos os anos tinha, uma festa de São João. E a tal menina viria à festa. Ela não morava por lá, mas vinha de vez em quando, pois tinha parentes que moravam no lugar. Já de um tempo a gente ia se aproximando, conversando, se olhando…
E nessa festa tinha uma novidade, muito comentada: ia ter um “Correio Romântico”. Meus amigos logo se alvoroçaram por causa disso. Anos atrás, quando não havia redes sociais, enviar bilhetes de amor era uma ação tangível… E eu percebia que também havia um alvoroço entre as moças do lugar – e as muitas visitantes que vinham para a festa. Todos estavam irmanados, cotejando a serventia do tal “Correio Romântico”. Aliás, era esse o seu nome oficial, porque, entre nós, ele era reconhecido como “Correio do Amor”.
Pois bem, entre meus amigos eu passava por ser pessoa inteligente (cabe dizer que, posteriormente, muitos deles se decepcionaram comigo quando “desperdicei” minha inteligência indo fazer doutorado e me tornando “cientista”, em vez de ganhar dinheiro “com negócios” e em vez de “fazer política”). Bom, nessa condição de inteligente, haja me pedirem para escrever, em nome deles, bilhetes de amor para depositarem no “Correio Romântico”.
Escrevi alguns e considerei que essa atividade estava roubando meu tempo de aproveitar a festa. Então decidi cobrar por meus talentos literários. Cobrei o que equivaleria, hoje, a R$ 1 por bilhete. Nunca foi tão fácil ganhar dinheiro…
Escrevi uns cinquenta, tornando-me um ghost writer dos afetos alheios…
Para o Antônio, eu compusera um mote decisivo:
“Tu és a canjica do meu amor. Queres dançar a quadrilha comigo?”
E ele começou a namorar com a Silvana.
Para o Carlinhos eu escrevi uma pérola: “Meu coração pula igual pipoca quando te vejo….”
E o Carlinhos começou a namorar com a Laurinha.
(Todo mundo achou esse bilhete uma obra prima).
E seguiu-se uma delongada sequência de bilhetes de proveito duvidoso: Nesse São João, tudo o que quero é o teu coração!; Você é mais doce que paçoca!; Não sou astronauta, mas gostaria de te levar até as estrelas esta noite; Quer pular a fogueira junto comigo?; Quando te vejo, meu coração solta rojão! Em breve tempo, já um pouco saturado com essa tarefa que me enriquecia, comecei a explorar todas as rimas como ão: São João, balão, rojão, quentão, razão, coração… Percebi que estava ficando repetitivo na minha arte e comecei, para a desgraça da métrica da língua portuguesa, a inventar, botando nos meus bilhetes românticos coisas como sabão, anão, mão, devoção, antemão, insurreição, decepção e, pelo que lembro, até mesmo retificação.
Pois é, minha gente, com essas bobagens fui fazendo fama de escritor e ficando milionário.
Para um amigo mais ousado, que queria um texto ousado, ousado como ele gostava de ser, escrevi: Eu sou o milho e tu és minha manteiga. E o pobre coitado levou um belo tabefe na cara.
E de repente, um adulto veio recorrer a meus serviços, pedindo para escrever um bilhete para sua esposa. Caprichei: De quadrilhas, nada sei / Mas São João é pai e também é rei / Queres acertar o passo da minha dança? Faturei R$ 10,00 com essa bobagem (aumentei o preço de meu serviço para R$ 5,00, considerando as capacidades da fonte pagadora e, ele, penso que satisfeito com meu trabalho, pagou em dobro).
Eu faturava e fazia fama de escritor. E aí, de repente, aconteceu uma dessas situações paradoxais que marcam passagens da vida. A menina que eu gostava em silêncio e sem coragem de me aproximar dela, veio até mim e pediu para eu escrever um bilhete romântico em nome dela. De início, aquilo partiu meu coração, mas logo percebi que o bilhete que ela pedia para eu escrever era… para mim mesmo.
Busquei prolongar nossa conversa, pedindo informações sobre os sentimentos que ela desejava expressar naquele bilhete. Ela foi dando alguns dados, discretamente, enquanto meu coração batia sem compasso.
Por fim, escrevi meu texto, fingindo fingir que não sabia a quem se destinava. E esse correio do amor dizia assim:
“A fogueira já tá queimando…”
No contexto, essas reticências eram de uma ousadia insustentável. Elas deixavam implícito que o sentido era figurado. Sim, porque havia coisas que queimavam, naquele momento. O coração disparado, o sentido disparado, a fogueira queimando…
“Isso expressa o teu sentimento?”, perguntei, meio fingido, meio sonso, meio apaixonado.
E ela disse: “Expressa sim!”
Quando entreguei o bilhete a ela, propositadamente – num ato de coragem exponencial para o tímido que eu era – toquei na sua mão, mas ela a retirou rapidamente. O ciclo do correio precisava ser cumprido antes de qualquer toque de mãos (hoje bem sei que o ciclo dos afetos demanda respeito pelo seu tempo: nunca pede para antecipar e não se pode perder o bom momento, o tempo certo de estar presente…).
Perguntei a quem se destinava o bilhete, para escrever o nome no envelope, e ela disse apenas: “Deixa que eu escrevo”. E assim o fez. O fez e foi entrega-lo na barraca do “Correio Romântico”, que se encarregava de distribuí-los. Ah, e é claro que não cobrei meu R$ 1,00 para escrevê-lo…
Bom, então já imaginam o que aconteceu.
Minutos depois recebi essa paradoxal primeira carta de amor de minha vida: uma carta que eu mesmo escrevi, para mim próprio, a pedido da pessoa que me queria, expressando os sentimentos dela misturados aos meus…
Acho que foi a maneira mais estratégica, senão mesmo astuta, de declarar afeto por mim com a qual já lidei, na vida.
Eu tinha uns treze anos ou catorze anos de idade. Recebi o bilhete e logo depois encontrei-a.
“Tu já sabes namorar?”, ela me perguntou.
“Não sei, e tu, tu sabes?”
“Um pouco, de ouvir contar”
“Mas tu queres me ensinar o que tu sabes?”
“Acho que a gente pode começar ficando de mãos dadas”.
E, contando isso, acabo de me lembrar da redondilha popular que todos vocês conhecem:
“Cai, cai, balão; cai, cai, balão
Aqui na minha mão
Não cai não, não cai não, não cai não
Cai na rua do sabão”

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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