0

Ao final do ensolarado mês de julho, o amante da sétima arte tem acesso a um dos melhores filmes do primeiro semestre da temporada 2024. É “Conto de Fadas”, de Alexandr Sokurov, que, infelizmente, teve curta temporada de exibição no circuito alternativo e está disponível via streaming por meio da Reserva Imovision.
Discorrer sobre exibição de um filme de Alexandr Sokurov não é só somente analisar e organizar pensamentos sobre o filme em questão. A exibição de uma nova produção do mestre do cinema contemporâneo russo é sempre um desafio, um acontecimento cultural a mobilizar novas ideias e conceitos sobra a forma de fazer cinema como uma das mais importantes das artes no cenário atual da produção internacional, o que também pode ser observado com o lançamento dos filmes de Michael Haneke, David Lynch, Lars Von Trier e David Cronemberg.
Em “Conto de Fadas” a experimentação audiovisual é marcada pelo uso da tecnologia deepfake, uma técnica que permite alterar um vídeo ou foto com ajuda de inteligência artificial, ou seja, o rosto da pessoa pode ser trocado pelo de outra e o que pessoa fala pode ser modificado. Assim, em tempos de eleições democráticas, em que o uso criminoso da inteligência artificial ganha espaço na ordem dos assuntos do dia, o uso artístico da ferramenta digital proporciona uma viagem que retrata conversas no purgatório entre Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill, com as participações inusitadas de Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte.
Dessa forma, estamos diante de uma crônica audiovisual, com base e influência no cinema documental, praticamente reinventada como um conto de fadas lúgubre, sombrio, ambientado em um mundo onírico e personagens históricos que marcaram a história da civilização ocidental no século XX.
Com letreiro irônico, que no início do filme informa que todas as imagens utilizadas no filme são de arquivo documental, sem o uso da deepfake, Sokurov provoca o espectador para participar de um pacto ficcional que está além de verdades e mentiras, do que é fato ou fake na representação, pela arte, da vida após morte em preto e branco e pouco uso da cor.
É só observar as referências simbólicas da composição gráfica onde os senhores das guerras vagam à espera de um chamado metafísico que pode apontar para o paraíso ou inferno: a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, nas poderosas gravuras de Gustave Doré; a cenografia gótica em ruínas, raízes e troncos de árvores; e a herança fantasmagórica do cinema expressionista alemão.
No purgatório, os fantasmas facínoras reafirmam que serão sempre os mesmos, com xingamentos mútuos, diálogos quebrados por egos inflados, piadas maldosas e a vontade contínua e imperiosa de comandar e exterminar massas de pessoas nas repetidas mentiras em nome, supostamente, de um bem maior para todos. Na etapa da passagem para o desconhecido, os poderosos falam para seus pares, seus idênticos, numa alusão direta à multiplicação de novos líderes mundiais similares e a prática das novas formas de persuasão e manipulação em situações de crise política, econômica e social.
A massa de pessoas que seguem em fanatismo aos senhores das guerras surge como um grande mar de gente desesperada, aos gritos em meio aos trovões e indiferença dos poderosos. Os braços estendidos da massa disforme e ondulante faz interface com pintura de Hieronymus Bosh na atmosfera de sonho e pesadelo elaboradora pelo cineasta Alexandr Sokurov, mais conhecido pelos filmes “Mãe e Filho” (1997), “Moloch” (1999), “Taurus” (2001), “Elegia de uma Viagem” (2001), “Arca Russa” (2002), “Pai e Filho” (2003), “O Sol” (2005), “Alexandra” (2007), “Fausto” (2011) e “Francofonia” (2015).
Em “Conto de Fadas”, os grandes líderes mundiais caminham lentamente numa narrativa fabulesca sobre demagogia e descaso com a humanidade. É cinema de experimentação que resiste bravamente às novas demandas de concessões de internacionalização do cinema produzido no mundo e um passo adiante na vitoriosa carreira de um diretor que, ainda na fase de estudante, foi acusado de defender visões antissoviéticas por priorizar o formalismo nas representações visuais, em detrimento da cartilha realista.
“Contos de Fadas” é um filme necessário e imperdível!ĺ

José Augusto Pachêco
José Augusto Pachêco é jornalista, crítico de cinema com especialização em Imagem & Sociedade – Estudos sobre Cinema e mestre em Estudos Literários – Cinema e Literatura. Júri do Toró - 1º Festival Audiovisual Universitário de Belém, curadoria do Amazônia Doc e ministrante de palestras e cursos no Sesc Boulevard e Casa das Artes.

Apocalipse agora?

Anterior

Círio das Canoas em Oriximiná

Próximo

Você pode gostar

Comentários