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Língua não tem osso e qualquer pessoa com no mínimo dois dedos de juízo na testa deveria saber, mas duvido existir alguém neste mundo que nunca ignorou tão certeiro dito popular. Eu, na minha série dos “eu nunca”, tinha uma máxima que era: jamais vou ter um animal de estimação. Sempre foi assim a minha vida inteira. Eles lá, eu cá. E, na verdade, eles bem lá lá mesmo, porque eu, uma típica menina criada em apartamento da Amazônia, além de nunca ter tido um bichinho em casa, tinha medo deles. Pânico, ouso dizer, relembrando um incidente bem tosco de quando, já por volta dos 14 anos, corri para o meio da avenida Magalhães Barata, onde minha avó morava, então, por medo de um mini-poodle que vinha serelepemente passeando com a sua tutora, preso em uma coleira.

Pois bem, com os anos, consegui controlar melhor o medo irracional e, pelo menos com os miudinhos, passei a conseguir conviver no mesmo ambiente em que estavam cães e gatos. Mas, assim, ter em casa, não. Eles lá, fofinhos, eu cá. E assim fui vivendo. Até que, um dia, conheci um gatinho humano que eu quis levar para casa. Só que tinha um porém: ele era “pai” de uma pessoa felina. “Ferrou”, pensei. Mas como eu queria muito um, resolvi que seria o jeito tentar me adaptar ao outro. Tá bom.

Ele entrou na minha vida com uns passinhos compridos e preguiçosos e causando muita confusão. Não me deixava dormir e eu o trancava pra fora do quarto. Ele comia as minhas plantas, subia na mesa, fazia mil besteiras, as possíveis e as inimagináveis. Dei-lhe a alcunha de Meliante e me irritava profundamente com ele. Tenho certeza de que a recíproca era verdadeira. Fomos vivendo deste jeito, numa guerra fria, testando os nossos limites, até que um dia o gatinho humano, que é médico, anunciou que começaria a dar plantões noturnos no hospital, e chegou a primeira noite em que, em casa, era só eu e o outro gato.

E foi então que o Meliante, que originalmente se chama Vitinho, virou o Binho (“Binha” sou eu, em casa), de tão impressionado que o nosso humano ficou com o grude que ele passou a ser comigo. De duas criaturas que se suportavam por causa de outrem, viramos companheiros inseparáveis. Ele passou a ficar o tempo inteiro colado no meu pé, não importando em que lugar da casa eu estivesse. Quando dei por mim, estava ele, dormindo de costelinha comigo, e sem me acordar. E, quando me apercebi, se ele não me seguisse imediatamente, era eu quem ia lá e o buscava. Vem pra cá, Gordinho.

Conviver com um bichinho é ser ensinada a reconhecer um tipo de amor que foge completamente daquilo que somos ensinados racionalmente como humanos, é aprender que a comunicação não-verbal tem um poder surreal e que somos capazes de amar baseados cem por cento em ações e zero em palavras. Realmente adotei o Binho de coração quando finalmente eu alcancei um entendimento profundo do valor da vida, de todas as vidas, indiferente da “capa”, e da soberba humana de achar que a nossa existência é mais importante do que a das outras espécies só porque, basicamente, nós temos o poder de destruir a vida no planeta.

A minha pessoinha felina é cheia de personalidade. Tudo tem de ser no tempo dele e não tenho nenhum meio para argumentar de uma forma que ele entenda. Adotar uma criatura inadestrável é também uma lição de respeito, de que, por mais que tentemos, não temos o poder de mudar ninguém. O outro é que tem de querer. As lágrimas brotam nos meus olhos quando penso que não o conheci pequenininho, quando o seu miado ainda era um “míu”, sem o “a”. Queria muito ter acompanhado o começo da infância dele, quando o conheci já era o finalzinho dela. Talvez ele fosse menos doido se tivesse sido criado, nos primeiros anos, por mim. Mais provavelmente, penso melhor, ele seria completamente pirado por causa da minha influência. A internet justifica as presepadas habituais por causa do pelo laranja. Eu replico. O fato é que, aquele gatinho arisco, que não gostava de colo, hoje faz um escândalo para subir no meu, para ver os nuggets (como chamamos as gaivotas) da janela, ou então chora e pula em cima de mim se estou há muitas horas absorta em frente ao computador sem dar a ele alguma atenção. Não há uma vez que toque um entregador na porta e que ele não fique na minha frente, em posição de quem vai me defender. Se eu vou comer, ele senta na cadeira do lado. E também não tem ocasião em que eu esteja triste ou doente que ele não se aninhe ao meu lado, quietinho, como quem diz “estou aqui contigo”.

O meu gatinho humano diz que, se fôssemos só nós dois, seríamos um casal. Por causa do Binho, somos uma família. Hoje o Beatles faz quatro anos e eu nem consigo mais imaginar a minha vida sem ele. Ele nunca vai saber das coisas que ele me ensina todos os dias, mas eu certamente nunca irei esquecer de quem eu virei por causa dele. Se um dia eu fui aquela pessoa que não queria, de jeito nenhum, viver sob o mesmo teto que um animal, já nem lembro. Casa é onde o Binho está.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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