Publicado em: 16 de julho de 2024
É muito fácil perder a humanidade quando alguém como Trump é atacado. É duro ter qualquer empatia por um sujeito cruel. Aí vem aquela premissa básica a dizer que toda vida deve ser respeitada e, sim, é preciso engolir qualquer instinto justiceiro em seco. Não podemos nos igualar a alguém tão vil senão acabou qualquer esperança de um mundo justo. Justiça, aquela coisa na qual é tão custoso continuar a acreditar, aquele pressuposto de uma vida de liberdade. Mas qual liberdade? A liberdade de Trump e seus apoiadores, que acham que é algo plausível qualquer pessoa ter acesso a uma arma de fogo e causar tragédias como a do sábado passado, que tirou a vida de uma pessoa e feriu perigosamente outras duas?
Sim, é difícil considerar Trump como uma grande vítima do atentado porque, no final das contas, para ele foi um grande trunfo eleitoral a foto com o rosto ensanguentado, de punho em riste e com a ondulante bandeira estadunidense por trás, numa recriação de Delacroix que seria difícil convencê-lo, na tumba, de que não foi acidental e sim um plágio escancarado. Aliás, é mesmo ralado não se deixar seduzir pelas teorias da conspiração de que os marqueteiros republicanos incorporaram os métodos de jihad das organizações fundamentalistas do Oriente Médio e alistaram o jovem de vinte anos Thomas Matthew Crook, oficialmente declarado adepto do partido político republicano, para morrer “pela causa”. A tática do “quase-mártir” no Brasil deu certo com Bolsonaro, em 2018, quando a tal da facada foi decisiva para que ele fugisse dos debates eleitorais e, com isso, aumentasse suas chances de eleição.
Um detalhe do vídeo do atentado é tão ou mais assustador do que os tiros em si: o fato que, depois de duas pessoas estarem mortas, duas gravemente feridas, a multidão aclama a terceira pessoa atingida, com a orelha “furada” – que nitidamente percebe a oportunidade de propaganda e dá ordem aos seguranças para que o deem espaço para fazer a pose eternizada pelas fotografias – com gritos que diziam “USA! USA! USA!”. Imaginem, é tipo alguém ser alvejado em Copacabana e as pessoas começarem a gritar “Brasil! Brasil! Brasil!”. É surreal e é chocante, principalmente porque imagino os minions brasileiros fazendo a mesma coisa. Não ficaram, afinal, meses provendo as redes sociais com os mais “preciosos” memes em frente aos quarteis militares, tentando até mesmo contatos extraterrestres com lanternas de telefones celulares? Égua.
A semelhança com a série “The Boys” não é mera coincidência. Homelander é escancaradamente inspirado em Trump, um “super-herói” sociopata, uma personagem narcisista completamente afundada em seu próprio umbigo, um ego inflado em proporções megalomaníacas que se autointitula líder mundial (qualquer semelhança com a cabeça do estadunidense médio…), e é subsidiado pela Vought, uma megacorporação que, como o Big Brother de “1984”, de George Orwell, manipula a opinião pública utilizando todos os mecanismos possíveis de mídia e entretenimento, até que a psicopatia do dito cujo atinge um nível tão absurdo que ele derruba a própria Vought em um de seus rompantes de raiva, tal e qual os célebres tweets de Trump. Ops, perdão pelo spoiler (que ainda vai continuar), mas se a capa de “série de super-heróis” te impediu até hoje de assistir, sugiro que reconsidere seriamente, pois nada como um produto artístico meticulosamente desenhado para o entretenimento em massa para conseguir elucidar, pelo menos um pouquinho, como o capital faz uso da mídia e do entretenimento – além de como fabrica “líderes” de extrema-direita que propagam um fanatismo que transformam cidadãos comuns em soldados do horror, horror que só beneficia 0,1% da população e que literalmente impossibilita não só o avanço da humanidade em seus direitos e qualidade de vida como direciona a realidade para a impossibilidade da vida humana no planeta Terra. É uma distopia que, assim como o romance de Orwell, assusta porque escancara que não estamos absolutamente nada longe desses mundos malucos.
Aliás, “The Boys” esfrega na nossa cara que os “crimes de pensamento” são uma pauta plausível para grupos políticos extremistas na nossa realidade. Em “1984” as crianças são doutrinadas pela Liga Juvenil e pelos Espiões, organizações juvenis que as ensinam a serem leais ao Partido acima de tudo e a denunciar seus próprios pais, tornando-as em ferramentas de vigilância e repressão. Na série, Homelander coloca seu próprio filho, Ryan, para gravar um especial televisivo de Natal destinado ao público infantil no qual as marionetes cantam uma canção que incentiva as crianças a denunciarem qualquer pessoa com pensamento progressista ou que defenda os direitos humanos como algo extremamente errado, mesmo se esta pessoa for um amigo, um professor, um familiar, mesmo os próprios pais. Não precisa ter lido o livro ou visto a série para já ter escutado algo do tipo: basta ter entrado em certas igrejas ou participar de alguns tipos de grupo do WhatsApp.
Corta para o mundo real. Thomas Crook. O pouco que sabemos sobre o rapaz é que portava uma arma comprada legalmente, munição comprada legalmente, que sofreu bullying durante sua vida escolar e que era revoltado especificamente por ter sido rejeitado pelo grupo de tiro de seu colégio por atirar mal. Sim, havia um CLUBE DE TIRO em seu COLÉGIO. Só este fato, em particular, já é assustador: o que esperar de jovens que foram formalmente educados a achar que é algo completamente normal e aceitável manejar um instrumento que tem como única função tirar uma vida?
Trump, agora ostentando seu curativo para as fotos, trocou a referência de “A liberdade guiando o povo” para “Autorretrato com a orelha cortada”. Enquanto van Gogh, o célebre artista – ruivo – sofria de transtorno bipolar com traços de transtorno de personalidade boderline (segundo um estudo realizado por acadêmicos da Universidade de Groningen, nos Países Baixos) que podem ter levado aos acessos de criatividade imortalizados em suas obras, mas que também o levaram a automutilações e ao suicídio, existe até um livro dedicado a analisar as possíveis patologias mentais do laranja Trump – que, em vez de produzirem arte, alavancam discursos de ódio. Em “O caso perigoso de Donald Trump“, vinte e sete especialistas em saúde mental, incluindo psiquiatras e psicólogos, defendem que sua obrigação moral e cívica de alertar os Estados Unidos sobre Trump supera a neutralidade profissional. Eles analisam os sintomas de Trump e possíveis diagnósticos relevantes, revelando um homem perigosamente desequilibrado e alertando como o narcisismo patológico combinado com a política pode ser fatal.
É muito, muito difícil considerar Trump uma vítima do ataque ocorrido no último sábado justamente porque essa violência gratuita, banalizada, midiática, nada mais é do que a base de tudo aquilo que ele defende e representa. No final das contas, as vítimas, além da população dos Estados Unidos, somos nós, que temos que levar na cara toda a rebarba que o imperialismo vomita e impregna a nossa própria realidade, que parece ter uma quedinha por reproduzir aquilo que eles têm de pior.

Imagem: Prime Video
Comentários