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Hoje o dia acordou embalado por aquela peça que um dia ele fez questão de me chamar em sua casa para me mostrar, na qual o piano vai de chuvisco a um temporal, com trovoadas, para ao final se abrandar. Partiu deste plano o meu tio José Wilson, que não é de sangue mas é de todo o coração, e que pra mim assinava, em seus divertidos e-mails, como tio Pimpão. Ou simplesmente Pimpus, quando dava na telha. “Mas só pra ti mesmo, que sou tio, porque depois que conheci a Damea, pras mulheres, o Pimpão não existe mais”, ele dizia rindo.

Meu tio Pimpão é uma figura. Daquelas pessoas genuínas, sem frescuras, completamente despojado e cheio de histórias engraçadas. Eu me divertia escutando os causos que ele contava, as histórias daquela longínqua Santarém de sua juventude, do maestro Isoca, das serenatas, dos cinemas da época em que os filmes ainda eram mudos e os músicos tocavam ao vivo para fazer trilha sonora, do saxofone que um dia precisou ser aposentado por causa do coração. Do casamento do meu tio, quando ele me “roubou” o microfone da mão e amanheceu comandando os outros santarenos no cancioneiro clássico do Tapajós. Encontrá-lo era sempre uma festa.

A última vez que o encontrei foi em uma festa, no bródio da Academia Paraense de Letras, no Natal de 2022. Estava cantando algumas composições de antigos membros daquele silogeu, acompanhada pelo Salomão Habib, e o “obriguei” a contar para todos uma história que é uma das minhas preferidas: uma vez, quando ainda era estudante, Isoca, seu pai, o levou para um almoço com seu amigo Waldemar Henrique. Ele, empolgado, não podia esperar para escutar todas as conversas que os grandes maestros teriam. Mas, no restaurante, para a sua decepção, os dois sentaram-se um de frente pro outro mas não proferiram uma palavra. O tempo passava, e nada. Até que ele, impaciente, peguntou “escuta, vocês não vão falar nada, não?”, e Waldemar prontamente respondeu “menino, eu e o teu pai não precisamos de palavras para nos entendermos”.

Não consigo acreditar que, da próxima vez que pisar na terrinha, não vou mais poder lhe abraçar e nem escutar mais aquela sua risada tão divertida. De longe mando todo o meu carinho para a minha tia Daminha, sua musa inspiradora de uma vida inteira e um amor inspirador, e para a Eula, Fauzy, Wilson Neto, Amyr, e o netinho por quem era tão loucamente apaixonado, Miguel – que vocês possam ser a fortaleza um dos outros neste momento de despedida. A vida é um sopro ao saxofone. Ao meu highlander tio Pimpus, vulgo José Wilson Malheiros da Fonseca, minha promessa de um dia contar a sua história do Bicho Papão. Se ele ler isto, de onde agora estiver, sei que vai rir.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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