Publicado em: 23 de novembro de 2025
Olhando o céu cinzento pela janela e lendo memórias em meu bloco de notas, onde compus meu diário de viagem, sinto que não conheci Belém; fui colhida por ela. A cidade abriu-se diante de mim como uma flor que conhece o instante exato de liberar seu perfume mais sofisticado e profundo. Vim para a COP30 com a justificativa oficial de representar minha casa de fragrâncias e de participar das mesas sobre sustentabilidade olfativa, mas, no fundo, buscava outra coisa. Perseguia, como todo perfumista, a matéria-prima única que apenas a floresta poderia revelar ao meu nariz treinado para experiências olfativas inusitadas. A Amazônia, descobri, é uma imensa pirâmide olfativa viva.
Em Belém do Pará
Ian, meu cicerone, aguardava no saguão do Val-de-Cans com a tranquilidade de quem entende o ritmo das marés. Trazia sobre os ombros um porte silencioso, acostumado a observar antes de agir. Quando disse meu nome, Élise, devolveu-o transformado, sem traços de estrangeirismo, como se fosse algo nativo que ele apenas reencontrava. Entendi que nada do que eu viveria ali dependeria do idioma, mas da sintonia.
A pirâmide olfativa é um conceito usado em perfumaria para traduzir olfativamente a complexidade sensorial. Uso-o aqui para interpretar a complexidade olfativa da maior floresta tropical do mundo. Ela é rica, verde, úmida, terrosa e cheia de camadas vivas, como se você estivesse caminhando no meio da mata fechada depois de uma chuva forte.
Uma pirâmide olfativa inspirada na Amazônia deve conter notas de saída, o primeiro impacto, o ar úmido da entrada na floresta:
Folhas verdes esmagadas, galhos quebrados
Limão-taiti, capim-limão (lemongrass), laranja-da-terra
Notas aquáticas frias (efeito de orvalho e rio)
Eucalipto brasileiro (eucalyptus citriodora)
Tangerina verde, petitgrain de laranjeira-da-terra
Pimenta-rosa (aroeira) e pimenta-preta leve
Notas de coração: o cheiro da floresta viva, densa e floral:
Jacinto-d’água (aguapé)
Vitória-régia (efeito lírio aquático gigante)
Jasmim-do-mato, jasmim-manga
Flor de maracujá
Copaíba (resina doce e balsâmica)
Priprioca (raiz aromática, cipó típico da Amazônia, cheiro terroso-especiado)
Buriti (fruta com cheiro cremoso e alaranjado)
Notas verdes intensas de folhas de violeta, figueira e goiaba
Hiacinto verde, muguet úmida
Notas de fundo: a terra molhada, as raízes, a madeira antiga:
Vetiver haitiano e brasileiro (cheiro de terra molhada)
Patchouli escuro e úmido (o famoso “patchouli amazônico”)
Breu-branco (resina clara, incense-like, sagrada na Amazônia)
Copaíba balsâmica profunda
Andiroba (noz amarga, terrosa)
Castanha-do-pará (efeito cremoso, lácteo)
Madeira de cedro brasileiro, cumaru (fava tonka amazônica)
Musgo de carvalho úmido (efeito de floresta depois da chuva)
Âmbar cinzento vegetal (efeito animalic leve da umidade orgânica)
A evolução do perfume da Amazônia real não é doce nem gourmand. É verde-agressivo, úmido-terroso, com um fundo balsâmico-resinoso e quase medicinal e sagrado, revelado pelas resinas do breu e da copaíba. Tem um tom aquático gelado (rios e chuva) misturado com calor vegetal intenso. Quando você respira fundo, sente um cheiro “verde-escuro”, quase preto, com toque envelhecido e fértil de flores brancas escondidas e madeira apodrecendo lentamente.
Inalar a Amazônia à margem de uma estrada, com o vidro do carro aberto e de olhos fechados, é sentir exatamente isso: um verde tão intenso que quase dói no nariz, umidade que gruda na pele e um fundo quente e resinoso que lembra incenso. É um dos cheiros mais complexos e vivos do planeta.
A primeira chuva caiu com intimidade. Belém lavava a si mesma para receber os que vinham debater o clima do planeta, mas, naquele instante, senti que chovia apenas a mim. O cheiro de terra e asfalto úmidos dançava no ar fresco da cidade. Ian ergueu o guarda-chuva para que eu não fugisse do ritual, e a chuva tocou minha pele com delicadeza. Era como se me dissesse que, para compreender aquele lugar, eu precisava ser atravessada na pele por aquelas gotas dançantes ao vento.
Durante o dia, na COP30, tudo girava ao meu redor com falas técnicas, acordos reticentes e sua agenda política global. Ao fim dos trabalhos, ou em intervalos, porém, Ian guiava-me por caminhos que não constavam em nenhum mapa do evento. Esse era o meu território verdadeiro: os cheiros indecifráveis dos trópicos úmidos.
No Ver-o-Peso, um mercado de tudo o que há, Ian caminhava discretamente atrás de mim, permitindo que eu acreditasse estar descobrindo tudo sozinha. Era ele, porém, quem convocava as portas invisíveis que se abriam ao abracadabra de seu toque familiar. Seu olhar tocava pessoas que logo me entregavam aquilo que eu precisava sem saber. Foi assim que conheci Beth, aquela figura mística, com seu avental florido e olhos cheios de uma sabedoria que não teme o mistério.
Beth Cheirosinha é uma mulher do mundo dos cheiros do Pará, dos sortilégios e rituais olfativos; à sua maneira, porém, perfumista como eu. Ela, rápida e falante, colocou em minhas mãos um frasco quente de copaíba. O aroma subiu devagar, denso, como uma serpente dourada que entrou pelo meu nariz e avançou para dentro, percorrendo minha coluna. O perfume ascendia em notas discretas. Não buscava impressionar, mas revelar algo saído das veias profundas da terra. Tentei pagá-la em dinheiro, num gesto automático herdado de todo europeu (corei internamente). Ela sorriu, tomou minhas mãos e recusou.
Me pague de outra forma, disse. Ela abriu uma página do seu caderno e ordenou: descreva o cheiro que te descobriu. A frase saiu de mim num impulso, como algo que já estivesse ali desde antes. Beth leu, destacou do caderno e guardou o papel junto ao peito. Está pago, colega.
Ela sabia que tínhamos ofício comum. Retirei da bolsa um exemplar de fragrância criada por mim, um eau de parfum fresco como as flores da minha terra. Ela sorriu e guardou.
Ian explicou, em voz baixa, que ela dissera que eu tinha nariz de mulher dos cheiros. Não questionei. Ali, entre mim e ela, verdades aromáticas dispensavam explicação.
O banho de ervas aconteceu ao entardecer. A água escura, saturada de folhas e rezas, transformou-se ao tocar minha pele. Senti a floresta brotar por entre minhas costelas, como se abrisse uma porta até então trancada, levando as riquezas da mata para um compartimento novo da minha alma. A Amazônia não era mais um cenário debatido nos painéis da COP30. Era uma memória sinestésica viva respirando dentro de mim.
Mais tarde, o açaí verdadeiro, espesso e misterioso como uma densa noite das telas de Van Gogh, entrou em mim para uma revelação terrosa e líquida. Cada colher trazia uma forma diferente de encantamento. O aroma viscoso de terra molhada ficou impresso em mim.
Foram sete dias de descobertas. Durante o dia, discursei em mesas redondas sobre bioeconomia, assinaturas olfativas e inovação verde. À noitinha, Ian conduzia-me a lugares que nenhum documento oficial conseguiria registrar. Anotei acordes, proporções, intuições. Mas, ao reler, via apenas uma frase que insistia em ocupar todas as margens: o nome da minha fórmula procurada.
Na última madrugada, Ian levou-me ao cais. O rio brilhava e me contava um segredo que prefere não ser revelado. Das mãos de Ian recebi um frasco minúsculo. Ao abrir, o perfume subiu como uma oração antiga, composta de chuva quente, priprioca, mangueira antiga, meu próprio suor colhido sem que eu percebesse e, no coração, o acorde impossível de alguém que inclina o corpo para que outro possa ver o céu.
Como se chama? Perguntei.
Saudade antecipada, respondeu ele, com um sorriso que parecia durar mais que o tempo.
Agora, no avião de volta à Europa, o inverno espera por mim. O frasco no bolso, porém, permanece morno, como se guardasse um pequeno coração pulsando. Em Grasse, os perfumistas, encantados, pediram a fórmula, aguçando narizes famintos de descoberta.
Abri o caderno para rever a fórmula.
As páginas, brancas. Vazias. Não apagadas. Não arrancadas. Vazias, como se jamais tivessem recebido as palavras que deixei ali. Ou como se a floresta tivesse recolhido de volta tudo aquilo que não me cabia possuir.
Deixei a fórmula onde ela nasceu, murmurei. A floresta pediu de volta o que nunca foi meu.
Abri e fechei o frasco. Ele tremeu por dentro, como se algo aprisionado buscasse saída ou retorno para casa.
Desde então, guardo-o comigo. Ninguém mais o abriu. Às vezes, quando o vento do Norte sopra num murmúrio estranho, sinto atrás de mim o perfume úmido da primeira chuva sobre a terra viva.
Às vezes pergunto se a floresta, paciente e soturna, espera que eu volte para buscar o que deixei ou para devolver o que jamais pertenceu a outro lugar além dela.



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