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Não consigo conceber a existência de uma palavra de ordem mais bonita do que “a poesia está na rua”, criada por Sophia de Mello Breyner Andresen e levada em um cartaz pela cineasta Margarida Gil para uma revolução que trocou armas por flores, os cravos vermelhos que são a pura poesia que canta a ideia de liberdade. Este é o quinto 25 de abril que acordo a cantar “Grândola, Vila Morena”. Não sei porque, mas tenho a sensação de ouvir poesia no barulho dos pés a marchar, apesar de detestar a referência militar que para mim é impossível dissociar. Talvez porque realmente a poesia está na rua, “a dura poesia concreta de tuas esquinas”, como cantou Caetano para uma Sampa que de vez em quando redescubro que ainda faz parte de mim e que também se aplica ao Porto, apesar de que aqui as esquinas não são tão duras assim.

Sophia era do Porto. Foi a primeira mulher a receber um Prêmio Camões, que ontem foi dado a Chico Buarque – com quatro anos de atraso, pois o ex-presidente do Brasil teve a rara fineza de não o sujar – por fazer poesias que cantamos na rua, muitas delas que cantam ideias de liberdade e que ensinaram já algumas gerações que apesar de você – seja quem você for – amanhã há de ser outro dia. “Arte é liberdade”, é muito fácil clamar. O engraçado é que tantas e tantas foram criadas justamente por causa da falta de alguma liberdade. Talvez porque antes de libertar os corpos seja essencial libertar as ideias. Mas talvez esta seja uma máxima um pouco forçada.

Os portugueses, em geral, têm muito orgulho do 25 de abril. Clamam a poesia de uma revolução pacífica, feita com flores, apesar de por trás dos cravos vermelhos haver séculos de um outro vermelho, de mares de sangue por eles provocados na América e na África. É claro que quando eu digo “eles” refiro-me a uns poucos, pois o povo português mesmo foi e ainda é vítima de muita pobreza, corrupção e atrocidades, apesar também de, entre eles, ainda existirem uns idiotas – não consigo encontrar outro termo – que ainda acham que são “conquistadores”, que por algum motivo incerto e não sabido ainda se consideram superiores àqueles que vieram dos lugares explorados e violentados pelos seus antepassados.

Quero muito ver só a poesia dos cravos vermelhos nas ruas e esquecer toda a hipocrisia. Quero fingir que possuímos de fato a liberdade que temos a ideia de ter. Quero que todos os expatriados tenham uma experiência como a minha, cercada de pessoas que me acolhem e me valorizam. Quero que todos aqueles que nasceram no dito Sul sejam tão bem tratados como eu sou e sempre fui no dito Norte por estar envolta numa bolha chamada Educação, que deveria ser um direito porém é um privilégio. Quero acreditar que “somos todos iguais, braços dados ou não”, como cantou o Vandré, mas é muito difícil. Quero esquecer que enquanto celebramos esta tal liberdade há marchas e tiros e bombas numa guerra num país não muito longe daqui. Quero esquecer que, no meu país, todos os dias morrem nas ruas mais pessoas vítimas da violência do que em qualquer guerra. Quero cantar “Grândola, Vila Morena” ao som das ondas do mar. Quero que o mar não nos separe e sim nos una. Feliz 25 de abril, mais uma vez.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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