Acabo de assistir a premiação do Oscar e entendo que minha insatisfação com o resultado de melhor atriz está na constatação de que a colonização é o que impera. Para quem não conhece, colonialidade é um conceito que se refere a permanência de relações de poder coloniais, mesmo após o fim da colonização oficial. Há uma continuidade de explorações e de suposta hierarquia de valores declaradamente visíveis, porém sustentadas por enredos que naturalizam essa supremacia, como beneficiando e aplaudindo pares e desconhecendo e negligenciando os colonizados, tidos como inferiores, subalternos, menos capazes.
Lembro que semestre passado orientava um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre um belíssimo filme nacional, “A vida invisível” e chamei atenção das alunas e do aluno (que por sinal, são bem queridos) quando abordaram o Oscar como um prêmio de status destacável e sem necessitar de referenciações, fato não feito com as demais premiações cinematográficas (inclusive, o Cannes). O fato é que, para minhas alunas e aluno, o Oscar era um prêmio popularizado como padrão de excelência, não os demais. Um exemplo do retrato da soberania americana sobre nós.
Divagando, embora nessa linha de pensamento, lembrei que outro dia, a Lulu, minha filha adolescente, perguntou qual filme estrangeiro que eu mais gostava e ela mesmo, ironicamente respondeu “Vingadores Ultimato” (ou algo assim), querendo me mostrar que filmes americanos, para nós, deveriam ser interpretados como estrangeiros. Não preciso dizer que morri de orgulho, pois percebi que ela já entendeu a égide dos jogos coloniais. A categoria “filme estrangeiro” é pura colonialidade, pois coloca todas produções americanas como centro e norma, as demais como outro.
Voltando ao Oscar, ganhamos um prêmio importante, o de melhor filme estrangeiro. O prêmio, num mundo dominado pela colonialidade disfarçada de “globalização”, tem seus bons efeitos. Primeiro porque sabemos que nossa produção está alcançando novos espaços, nossa narrativa está sendo ouvida. O filme “Ainda estou aqui” fissura a história oficial e conta as mazelas da ditadura militar, ainda vendida por alguns, como um período de conquistas. Com o mesmo slogan que retoma na atualidade, da defesa da família tradicional, o filme demonstra o que faziam, de fato, com as famílias. Além disso, conta a história da força de uma mulher, mãe e grande militante das pautas políticas. Filme que vem de um livro, cujo próprio autor diz só ter sido possível pela iniciativa da nossa antiga presidenta que instaurou a comissão da verdade. Sendo bastante perseguida por isso. Por isso, a vitória está além da premiação, mas nos efeitos e sentidos que também carrega. (E os adeptos de fakenews nem podem argumentar que o Oscar é festa de comunista, o que traz aquela gostosa risadinha interna).
Também confesso que me agradou ver a não premiação de filme Emília Perez, produzido por europeus, distorcendo uma cultura local (mexicana) e as pautas da comunidade trans. Emília Perez foi um filme produzido sem o mínimo de pesquisa, responsabilidade com cuidado e informações, reiterando lógicas violentas de discriminação e demonstrando como há o desejo de lucrar à qualquer custo (mesmo que de forma leviana) com pautas que deveriam ser de responsabilidade social. É preciso refletir e debater gestos de xenofobia e transfobia, disfarçados de lutas políticas, onde o fim é guardar dinheiro.
O fato é que me peguei pensando como seria legal que nossas premiações também tivessem peso internacional. Nós produzimos coisa boa para caramba.
Em relação a premiação de melhor atriz, confesso que estava com dúvidas sobre o resultado, acreditava também na Demi Moore, uma mulher que se abrilhantou pela atuação em Substância, além de ter sofrido todas as mazelas da indústria do cinema, como etarismo e desqualificação feminina pela objetificação. Seu trabalho foi uma denúncia da realidade, um protesto em ato. E é aqui que minha insatisfação se fez. Não irei falar de Anora, que ainda não vi, tampouco ignorar alguns feitos sobre filmes independentes e afins, muito menos questionar o talento de Mikey Madison, pois facilmente cairia na armadilha patriarcal de que para qualificar um mulher, é preciso desqualificar outra. A atriz fez seu trabalho bem feito e fim. Não é necessariamente sobre ela que precisam recair reflexões sobre a não escolha de Fernanda ou Demi.
A crítica precisa ser sobre a academia e sua lógica estrutural, em que facilmente constatamos: a indústria cinematográfica reitera a lógica patriarcal criticada em Substância. Para quem não viu o filme, é sobre a objetificação das mulheres, pela imposição da juventude, com a aniquilação delas pela idade. Não se trata nem de padrão de beleza, porque a depender da idade, até o padrão de beleza (branca, magra e afins) se torna irrisório, tão quanto talento e competência. Até onde precisamos ir para nos manter aceitas? O filme aborda uma completa desvalorização que leva a intenso sofrimento psíquico, com medidas invasivas no corpo, exigindo verdadeiras deformações, intervenções que nunca são o suficiente e que o capitalismo tão bem se apropria, pois promete, mas não entrega. Afinal, possível fazer muitas intervenções estéticas, que disfarcem as marcas da idade, mas jamais teremos a juventude de volta. Logo, o mesmo capitalismo que leva a corrida de mulheres em alta mutilações, intervenções, modificações, é o capitalismo que também produz a chacota, chama de “monstro” e que descarta na lixeira.
Valeska Zanello (2018) ao falar de prateleira do amor (lugar simbólico que nos subjetivamos a ocupar, uma vez que o amor é identitário para nós, e que a objetificação é um destino, sendo internalizada por nós próprias) revela que o lugar de valorização para nós é efêmero, pois o envelhecimento para mulheres é um risco real de abandono, de desvalorização, e desqualificação.
A sociedade patriarcal nos dá status (poder colonizado) conforme estivermos na métrica de objetificação: magras, gostosas, em que nosso corpo é uma vitrine para a aceitação. Mas, juventude não é eterna e a sociedade é bem cruel conosco, relegando nossa vitalidade e valor ao período que somos reprodutivas. Fato que afeta homens de forma diferentes que, inclusive, tendem – para se sentirem jovens e reconhecido entre seus pares – a procurar mulheres mais jovens. Objetificadas como troféus, estas mulheres têm precisa função social para esses homens, os quais passam – a depender dos seus marcadores, como classe social – a se tornar “um melhor partido”.
Esta lógica não se restringe às relações amorosas, ela também é encontrada nas organizações sociais, espaços profissionais, como na academia cinematográfica. Outro dia, assisti “Canina” e me percebi impactada pela atriz estar com rugas e acima do peso – obviamente que fazia parte da construção da personagem. Mas quanto tem sido raro assistirmos pessoas fora de um molde padronizado esteticamente. Pessoas que atuam costumam corresponder um protótipo de corpo, tornando natural até mesmo as intervenções estéticas (já viram a moda agora de botox nos lábios?). Além disso, as narrativas, as histórias e as premiações também revelarão um sistema.
De acordo com a publicação do instagram @Claudiaonline, desde 1930 apenas 19% das atrizes vencedoras na categoria de Melhor atriz tinham mais de 50 anos (número consideravelmente maior com homens, 34%). A página do instagram @Vulvanegra também se posicionou: “em um ano que tanto se celebrou o sucesso de mulheres mais velhas na indústria do entretenimento, a academia optou por premiar uma atriz iniciante, com menos de 26 anos”.
O que podemos questionar: o que a escolha de melhor atriz revela da academia em relação as mulheres? O etarismo é uma delas. O Oscar e suas premiações fazem parte de um projeto político, revela algo desta sociedade.
Além disso, assistimos um repeteco de vermos mulheres que mereciam ser premiadas – Fernanda Montenegro e Fernanda Torres – não levando a estatueta. A frustração vem porque merecíamos reparação histórica e por constatar o óbvio. E Fernanda Torres sabia disso. O Oscar é uma premiação americana, cujas escolhas são marcadas pela colonialidade.
Um evento que sequer consegue indagar seu presidente. Um evento que, anos atrás, considerou que Cidade de Deus não merecia o prêmio por ser “forte demais” é um evento incapaz de ser técnico o suficiente para ser justo, além de ser um evento envolto em relações de poder.
Neste ano, ver piadas com bombeiros sobre a cidade destruída pelo Coringa, após o discurso real de diretores de documentário sobre a Palestina e Israel é uma ironia sem tamanho. Mais que ironia, é de uma violência sem tamanho. Por que o Oscar é televisionado e outras premiações não? Quem compõe a cadeira de juradas/os? Por que o Brasil parou para ver o Oscar? Por que precisamos ser reconhecidos no óbvio?
Precisamos despir dessas coroações de narrativas hegemônicas. Talvez, o Oscar nos ajude a calar as bocas de um monte de não estudiosos/as que se dizem de direita e pregam uma história do Brasil sem eira, nem beira, afinal a história dos Paiva´s é a história do Brasil, de tortura e barbárie, e que nosso ex-presidente Jair Bolsonaro comemorava. Penso que validar uma memória que insistem em apagar é de ganhos imensuráveis: o história da ditadura militar no Brasil não foi de avanços, mas de corrupção, opressão, violência e tortura. Mas, não é o Oscar que vai nos dizer sobre nossa história, nós temos muito mais, inclusive o belíssimo livro de Rubens Paiva. Também não precisamos do Oscar para nos encher de admiração e amor (porque somos brasileiras/os e amamos sim) pelas nossas divas Fernandas. Nós sabemos da força da nossa arte.
VIVA A DEMOCRACIA! A vida presta e vamos continuar sorrindo.
Para os conservadores, engulam essa.
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