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João Francisco Lobato

A Amazônia brasileira, com sua vastidão de florestas, rios e mistérios, não é apenas um tesouro natural, mas um palco de uma história humana rica e complexa. Desde os primeiros rastros de vida humana há mais de 13 mil anos até os incentivos econômicos contemporâneos, a região moldou e foi moldada por povos resilientes, exploradores ambiciosos, violência colonial e ciclos de prosperidade e conflito. Esta narrativa traça os contornos dessa trajetória, revelando como as sociedades ancestrais deram lugar a uma era de conquistas europeias, transformações econômicas e desafios persistentes, oferecendo lições sobre adaptação e sustentabilidade para o mundo de hoje.
Tudo começa muito antes da chegada dos europeus, em um tempo em que a Amazônia era habitada por povos ancestrais que transformaram o ambiente hostil em lar próspero. Há cerca de 13 mil anos, grupos de caçadores-coletores migraram para o continente americano, deixando evidências em sítios como Monte Castelo, no atual Rondônia, onde ferramentas de pedra e ossos de animais extintos contam a história de uma adaptação inicial à megafauna pleistocênica. Com o passar dos milênios, por volta de 11 mil a.C., esses nômades evoluíram para sociedades sedentárias, como indicam as pinturas rupestres e fogueiras do sítio de Pedra Pintada, em Monte Alegre no Pará. Eles dominaram tecnologias inovadoras para o bioma tropical: a agricultura de coivara, com cultivos de mandioca, milho e feijão, e a criação de terras pretas antrópicas — solos férteis produzidos por resíduos orgânicos que sustentavam populações estimadas em até 10 milhões de habitantes. Um exemplo notável dessa complexidade é o agrupamento de Ocara-Açu, situado na confluência do Rio Tapajós com o Amazonas, que reunia cerca de 60 mil habitantes de etnias diversas, como grupos Tupinambá e outros povos locais, em uma rede de aldeias interconectadas com estruturas sociais hierárquicas, rituais coletivos e comércio fluvial avançado, ilustrando o alto grau de organização urbana pré-colonial. Essas comunidades, divididas em mais de 300 grupos linguísticos como os Tupi-Guarani, Arawak e Karib, organizavam-se em aldeias hierárquicas lideradas por caciques e xamãs, com redes de comércio que trocavam conchas do litoral por ferramentas do interior. Cerâmicas policromas da cultura Marajoara, canoas ágeis para navegar os rios e ilhas artificiais em áreas alagadas demonstram uma engenharia social e ecológica avançada, que gerenciava a floresta de forma sustentável, preservando sua biodiversidade. Geoglifos no Acre, datados de 2 mil a.C., sugerem rituais coletivos e planejamento urbano primitivo, pintando um quadro de uma Amazônia vibrante e interconectada, longe do mito de uma terra virgem e desabitada.
Essa harmonia foi abalada com a chegada dos europeus no século XVI, quando expedições exploratórias irromperam na bacia amazônica em busca de riquezas e glória. Foram os espanhóis quem deram os primeiros passos: Vicente Yáñez Pinzón navegou o delta do Amazonas em 1500, impressionado por suas águas doces, embora sem estabelecer colônias. A verdadeira odisseia veio com Francisco de Orellana, em 1541-1542, que, ao acompanhar Gonzalo Pizarro em uma busca por El Dorado, desceu o rio Amazonas em uma jornada épica de fome, combates e lendas — incluindo relatos de guerreiras (nossas icamiabas) que inspiraram o nome “Amazônia”. Os objetivos eram claros: ouro, escravos e a expansão do império cristão, mas os desafios geográficos, como inundações sazonais, insetos vorazes e a vastidão fluvial, tornaram a conquista uma empreitada arriscada. Interações iniciais com povos como os Omagua foram marcadas por trocas cautelosas — ferramentas europeias por alimentos indígenas —, mas rapidamente escalaram para violência, com ataques de flechas envenenadas e remoções forçadas. Já os portugueses mesmo avistando o litoral em 1500, só nos anos 1600, com jesuítas como José de Anchieta e Manuel de Nóbrega, as missões se estabeleceram, promovendo catequese e proteção contra a escravidão dos indígenas, embora forçando a aculturação desses. Pedro Teixeira mapeou o rio em 1637-1639, consolidando a presença lusa contra rivais holandeses e franceses. Epidemias como varíola e sarampo, trazidas inadvertidamente, dizimaram até 90% das populações nativas, enquanto o sistema de “descimentos” — vilas missionárias — alterava para sempre as dinâmicas sociais, introduzindo uma era de exploração que ecoaria por séculos.
À medida que a colonização se aprofundava nos séculos XVIII e XIX, a Amazônia evoluiu de fronteira inexplorada para epicentro de ciclos econômicos que definiram sua identidade. As reformas pombalinas, sob o Marquês de Pombal entre 1750 e 1777, secularizaram as missões jesuítas e expandiram fortificações como Belém e Manaus, integrando indígenas à economia via o Diretório dos Índios. O ciclo inicial das “drogas do sertão” – ipecacuanha, guaraná e salsaparrilha – deu lugar ao da borracha, a partir de 1870, impulsionado pela Revolução Industrial europeia. Barões da borracha enriqueceram com o sistema de aviamento, que endividava seringueiros — caboclos e indígenas — em um ciclo de exploração brutal, transformando Manaus na “Paris dos Trópicos” com teatros e bondes no auge de 1910. No entanto, o contrabando de sementes de seringueira por Henry Wickham para a Ásia em 1876 precipitou o colapso, gerando miséria e migrações em massa. A República, a partir de 1889, acelerou a expansão territorial com o Tratado de Petrópolis em 1903, incorporando o Acre, enquanto a “Marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas nos anos 1930 incentivou colonização interna. Cidades como Belém e Manaus floresceram: a primeira como porto vital, a segunda de posto militar a capital provincial em 1850, a primeira foi marcada pela Cabanagem (1835-1840), uma rebelião popular contra elites imperiais que ceifou de 30 a 40% da população paraense e destacou tensões sociais profundas. Políticas da ditadura militar (1964-1985), como a SUDAM (1966) e SUFRAMA (1967) e rodovias como a BR-319, BR-230, BR-163, BR-174 e a BR-364 promoveram um desenvolvimento “planejado”, na direção do Integrar para não Entregar, mas fomentaram a degradação e depleção da floresta, com garimpo ilegal e desmatamento, criando um “povo amazônico” mestiço e resiliente, forjado em desigualdades e resistência cultural. O avanço das fronteiras agrícolas representa um dos capítulos mais impactantes da economia regional recente, impulsionando o crescimento, mas demandando transições urgentes para a sustentabilidade. No Pará, a pecuária extensiva expandiu-se, rapidamente desde os anos 1980, convertendo milhões de hectares de floresta em pastagens, com rebanhos que hoje superam 25 milhões de cabeças, o segundo maior rebanho do Brasil, cerca de 10% desse gado. Essa expansão gerou empregos rurais e exportações de carne, mas acelerou o desmatamento – um dos principais drivers, contribuindo para cerca de 40-50% das perdas na região – e emissões de carbono, além de solos degradados pela erosão. Em Rondônia e Mato Grosso, a soja emergiu como commodity global, com plantações que cresceram de 500 mil hectares nos anos 1990 para mais de 15 milhões hoje, impulsionadas por rodovias e demanda internacional. Rondônia, outrora floresta densa, viu sua produção de soja triplicar em duas décadas, enquanto Mato Grosso, porta de entrada para o Arco do Desmatamento, lidera as exportações nacionais, representando 40% da soja brasileira. Esses avanços econômicos – que elevaram a renda per capita em 200% em áreas agrícolas – contrastam com impactos ambientais, como perda de biodiversidade e conflitos fundiários (MT se tornou o segundo maior PIB per capita do país). No entanto, tendências atuais apontam para projeções otimistas: iniciativas como o Novo Código Florestal e programas de rastreabilidade promovem pastagens sustentáveis no Pará, com integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) que recupera solos e reduz emissões em 30%. Em Rondônia e Mato Grosso, a soja de baixo carbono, certificada por moratórias contra desmatamento, projeta um mercado global de R$ 100 bilhões até 2030, alinhando expansão agrícola à restauração ecológica.
Entrelaçados a esses períodos, fatos marcantes e figuras emblemáticas iluminam as contradições da história amazônica. A Cabanagem, por exemplo, não foi mero levante, mas uma protorrevolução cabocla contra a fome e o despotismo, liderada pelos irmãos Francisco e Antônio Vinagre, o cônego Batista Campos, e Eduardo Angelim. Séculos antes, Ajuricaba, cacique Manaó, capturado em 1727 por rebelar-se contra a escravidão, se jogou no Rio Amazonas, preferindo o suicídio à escravidão, simboliza a resistência indígena inicial. O Marquês de Pombal trouxe modernização autoritária, enquanto Cândido Rondon, no século XX, defendeu os direitos indígenas em expedições telegráficas, promovendo o lema “morrer se preciso for, matar nunca”. Mais recentemente, Chico Mendes, sindicalista assassinado em 1988 por defender a floresta contra fazendeiros e Dorothy Stang missionária americana, assassinada em 2005 por defender direitos dos trabalhadores rurais e povos indígenas contra a grilagem de terras e o desmatamento, personificam o ativismo ambiental que une passado e presente. Esses eventos e personalidades — do Tratado de Madrid em 1750, que ampliou fronteiras, à Revolução da Borracha — revelam uma região moldada por ambição e luta, onde a exploração e colonização econômica frequentemente colidiu com a preservação ambiental e cultural.
No coração dessa evolução moderna, a Zona Franca de Manaus surge como um capítulo secundário de industrialização periférica, criada em 1967 durante a ditadura militar para atrair indústrias com isenções fiscais e integrar a região à economia nacional. Gerenciada pela SUFRAMA, foca em eletroeletrônicos, gerando cerca de 100 mil empregos e contribuindo com 4-8% do PIB industrial nacional, mas reforçando dependências externas e desigualdades, sem priorizar a sustentabilidade ambiental – um modelo agora superado por abordagens mais holísticas.
Em resumo, a história da Amazônia brasileira é uma tapeçaria de inovação ancestral, traumas coloniais, booms econômicos efêmeros e esforços de redenção moderna, onde povos originários, exploradores e ativistas tecem um legado de resiliência. De terras pretas a zonas industriais, a região nos convida a refletir sobre o equilíbrio entre progresso e preservação. Para o futuro, políticas inclusivas que honrem essa herança — valorizando indígenas e combatendo desigualdades — serão essenciais, garantindo que a Amazônia continue a inspirar e sustentar o Brasil e o mundo. Projetando o futuro, o desenvolvimento sustentável na Amazônia delineia um novo paradigma econômico, onde tendências como a bioeconomia e os serviços ambientais superam os modelos extrativistas do passado. A bioeconomia, que integra saberes indígenas com inovação, fomenta cooperativas de produtos florestais não madeireiros, como o açaí e a castanha, prevendo um setor que gere 1 milhão de empregos verdes até 2040. Pagamentos por serviços ambientais, via REDD+ e fundos internacionais, remuneram comunidades por preservar florestas, transformando a biodiversidade em ativo econômico – com potencial de US$ 20 bilhões anuais em créditos de carbono. Centros de pesquisa em Belém e Manaus impulsionam P&D em agroecologia, como variedades de soja resistentes à seca em Mato Grosso e pecuária regenerativa no Pará, reduzindo o desmatamento em 50% até 2030, conforme metas do Acordo de Paris. Essa visão prospectiva equilibra crescimento regional com preservação, honrando a resiliência histórica da Amazônia e posicionando-a como líder global em economia verde, onde o avanço agrícola, diferentemente, do que ocorre hoje, evoluiria para sistemas integrados que nutrem o planeta.
Olhando para o horizonte, a Amazônia brasileira desponta como epicentro de uma bioeconomia vibrante, onde a biodiversidade exuberante – lar de milhões de espécies endêmicas – se transmuta em motores de inovação sustentável, gerando produtos farmacêuticos, cosméticos e alimentos funcionais derivados de plantas ancestrais como a copaíba, andiroba, cumaru, guaraná e o açaí. Essa transição impulsiona uma bioeconomia inclusiva, que entrelaça os saberes culturais indígenas, como as práticas agroflorestais dos Yanomami e Tukano, com comunidades locais, fomentando cooperativas que democratizam benefícios e preservam tradições milenares em um modelo de economia circular. Os serviços ambientais, remunerados por mecanismos internacionais como o REDD+ e pagamentos por ecossistemas, valorizam a floresta como provedora de biodiversidade, regulação climática e água doce, transformando a preservação em renda para ribeirinhos e originários. No cerne desse desenvolvimento sustentável, centros de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI) emergem como faróis, integrando universidades amazônicas e institutos globais para bioengenharia e tecnologias verdes, como bioenergias de biomassa e monitoramento por IA de florestas. Assim, a região forja um novo ciclo de prosperidade, onde a herança histórica de resiliência cultural e ambiental se converte em legado futuro de liderança mundial, harmonizando humanidade e natureza em uma era de inovação regenerativa.

João Francisco Lobato
João Francisco de Oliveira Lobato é engenheiro civil (UFPA) e administrador de empresas (Mackenzie), MBA-E (FEA-USP), mestre em Sustentabilidade (FGV), doutorando em Sustentabilidade (Unifesp). Tem experiência profissional como executivo, conselheiro e consultor junto ao setor privado nas áreas de: Estratégia, ESG - Sustentabilidade, Planejamento Empresarial, Governança e Ética, Inovação, P&D e Gestão de Conhecimento. Junto à área pública e sociedade civil: Inovação Social, Redes e Democracia, Empreendedorismo Social, Ecologia e Inclusão Produtiva. Foi executivo e C-level por 16 anos no grupo Coimbra Lobato, gestor do programa Cidadão do Presente (Governo SP), superintendente da Fundação Stickel e diretor no Instituto Jatobas. É membro de: Uma Concertação pela Amazonia, Observatório do Clima e Pacto pela Democracia, diretor de Sustentabilidade do Instituto Physis e VP do Instituto JUS. Atualmente, sócio-diretor da JFOL Capacitação e Treinamento, consultor sênior da FIA - Fundação Instituto de Administração e diretor de Sustentabilidade da QCP Consultoria e Projetos.

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