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Em
seu blog Pianomusici,
Niomar Souza, pianista, pesquisadora musical e folclorista, aborda a Jenny/Geni
(a prostituta execrada) de Weil, Brecht, Gay, Pepusch, Chico Buarque, Nelson
Rodrigues, revelando a surpreendente relação entre quatro óperas – uma delas
brasileira, tão erudita quanto as outras, porém criada no âmbito da arte
popular – e uma peça de teatro brasileira. Trata-se das obras de Kurt Weill e
Bertold Brecht, a Ópera dos Três Vinténs
e Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny;
a Ópera do Mendigo, de John Gay e
Pepusch, do século XVIII; e A Ópera do
Malandro
, de Chico Buarque; e a peça Toda
Nudez Será Castigada
, de Nelson Rodrigues. As quatro óperas têm o mesmo
conceito na estrutura, na caracterização dos personagens – malfeitores,
assaltantes, rufiões, prostitutas- traidoras; na ambientação – um submundo
social; nas estórias – corrupção e exploração; e até na encenação de uma
parada, na cena final. Ao pesquisar Weill e Brecht, Niomar encontrou – vejam só
– até Bob Dylan!
Kurt
Weill nasceu em Dessau, Alemanha, 1900, e morreu em Nova York, 1950. Filho de
um cantor litúrgico judeu, que lhe deu educação rígida e meio esnobe, era
tímido e devotado à música. Na juventude quis ir para Viena estudar com
Schoenberg mas, como a situação financeira da família não permitiu, foi para
Berlim e estudou com Ferruccio Busoni (ítalo-germânico, 1866-1924). Em Berlim
se surpreendeu com a complexa linguagem sinfônica de Mahler e o apelo popular
de Strawinsky na História do Soldado. Busoni era um mago da música do início do
século XX, um cosmopolita num contexto nacionalista, um pragmático quando
dominava o absolutismo estético. Muito ensinou a Weill e, principalmente, a
“não ter medo da banalidade” – na época, tudo o que era italiano ou francês.
Weill se desenvolveu musicalmente com a abertura, a liberdade e a inovação
vigentes.
Berlim,
no período entre as duas guerras mundiais, era uma cidade de possibilidades
ilimitadas. Conviviam comunistas, nazistas, social-democratas, nacionalistas,
com expressionistas, dadaístas, românticos anacrônicos. Era a cidade dita “sem
pudor algum”. Os jovens compositores alemães aderiam aos ritmos do Jazz, ao
ruído das máquinas da indústria e se envolviam com a cultura popular. Queriam
efetuar a união da música erudita com a vida moderna.
Weill
desenvolveu a teoria do caráter gestual da música – o Gestus–, o momento em que
a pantomima, a fala e a música dão origem a um lampejo de significação.
Escreveu o ensaio Sobre o Caráter Gestual da Música, em 1928. Bertold Brecht,
alemão, viveu de 1898 a 1956. Foi poeta e dramaturgo, um dos maiores autores
alemães e um dos mais relevantes literatos do século XX. Para o teatro,
continua a ser extremamente importante até hoje. Suas obras têm dimensão
pedagógica; é contrário à passividade do espectador. Marxista, defendeu
formar/estimular o pensamento crítico.
A
partir de 1927, Brecht se une a Weill e juntos vão criar óperas memoráveis.
Brecht apreciava expor os fora da lei, os corruptos, pessoas sem princípios e a
crueldade, categorias exploradas na Ópera
dos Três Vinténs
e na Ascensão e
Queda da Cidade de Mahagonny
. Aliás, em Berlim e em Weimar havia uma
obsessão pela figura do homem mau, do assassino, do malfeitor retratado na
arte. (lembre-se o cinema expressionista alemão).
A
Ópera dos Mendigos ( The Beggar’s Opera), criada na
Inglaterra em 1728 por John Gay e Pepusch, tem como protagonista o capitão
Macheath, pessoa sem escrúpulos, conquistador de mulheres, um gênio do crime
cujo caráter audacioso é o tempero da sua sorte. A ópera satiriza o interesse
das classes altas pela ópera italiana, ataca estadistas, regimes corruptos e
criminosos conhecidos. Macheath acaba traído pela prostituta Jenny (e outra
chamada Sukey)e é condenado à morte. Foi criado como sátira dos políticos
corruptos da época de John Gay.
A
Ópera dos Três Vinténs é uma alegoria
da Ópera dos Mendigos. Nela,o
Macheath,de Weill/Brecht, chamado Mack the Knife, Mack o Navalha, embora
encantador é mais terrível, um psicopata que mata por prazer e por dinheiro.
Jenny, a prostituta, sonha em vingar-se dos homens que a exploraram. Com a
chegada de um navio de piratas, ela pede a eles que destruam essas pessoas. Há
uma canção-tema que ficou famosa, conhecida como “balada do assassinato” na
qual são relatados homicídios como o desaparecimento de homens ricos, sete
crianças mortas num incêndio, uma jovem estuprada e a morte de Jenny Towler,
com uma faca no seio.
A
canção Mack, o Navalha, na década de 50, entrou para o repertório popular
americano, ganhando variantes nas vozes de Louis Armstrong e Frank Sinatra.
Armstrong, de brincadeira, acrescentou à letra da música mais vítimas de Mack,
entre outras: Jenny Diver, sweetLucy, Lotte Lenya (cantora e amante de Weill).
Há uma performance de Armstrong, de 1956, cantando esta canção, aqui.
Em
1962, foi apresentada uma revista no Theater de Lys, em Greenwich Village, Nova
York, chamada Brecht on Brecht, em cuja plateia se encontrava um jovem cantor e
compositor de Minnesota, Bob Dylan. Ele se encantou ao ouvir a canção “Pirate
Jenny” (Pirata Jenny), da Ópera dos Três
Vinténs
, na qual a prostituta revela seu desejo de se vingar de seus
exploradores. Dylan escreveu em sua autobiografia que os exploradores estavam
ali na plateia e que não havia protesto ou crítica social e política na canção.
Impressionou-o o refrão que repetia: E um
Navio com Oito Velas e Cinquenta Canhões
, em que os versos lembravam a
buzina de nevoeiro em Lake Superior perto de sua casa de infância. Dylan
imprimiu a linha do Gestus, por
influência de Weill e Brecht, em suas próximas composições, dentre elas A Resposta está soprando no Vento, Vai cair uma Chuva Forte, e Os Tempos Estão Mudando.
Ouçam
a canção Pirate Jenny, com a estupenda
Nina Simone, aqui.
E
Bob Dylan em A Resposta está soprando no
Vento
(Blowin in the Wind) aqui.
Em
1931, com a relação Weill/Brecht completamente desgastada, é lançada uma obra
prima da dupla: a ópera Ascensão e Queda
da Cidade de Mahagonny
. Conta a estória da viúva Begbick e seus comparsas,
acusados de fraude e lenocínio, que estão fugindo das forças da lei quando o
seu caminhão tem uma pane e para em pleno deserto. Eles resolvem, então, fundar
ali uma cidade (referência a Las Vegas). E logo chegam os tubarões: a
prostituta Jenny e seus companheiros mal encarados. O vício e a corrupção
prosperam, nascem fortunas. Após um furacão que quase destrói a cidade, um
lenhador, Jim Mahony, a princípio do bem, proclama nova lei: cada um deve fazer
o que quiser. A anarquia se estabelece e Jim, acusado de não pagar as contas, é
condenado à morte. E a cidade também chega à ruína. O libreto de Brecht costuma
ser interpretado como um protesto contra o capitalismo desenfreado norte-americano;
ou também pode ser uma crítica à falsa utopia da então União Soviética. Vejam  reproduções da ópera aqui.
A
Ópera do Malandro, de Chico Buarque,
estreada em 1987, foi inspirada na Ópera
dos Três Vinténs
de Weill e Brecht e atualizada para a realidade brasileira
em 1940, no fim do Estado Novo. O cenário é a Lapa, bairro do Rio de Janeiro. A
sociedade está repleta de empresários inescrupulosos, policiais corruptos,
agiotas, empresários inescrupulosos, contrabandistas que frequentam bares e
bordéis. Há rivalidade entre o comerciante dono do bordel e o chefe
contrabandista que acaba se casando em segredo com a filha do primeiro. Geni e
o Zepelim constitui um quadro emblemático dentro da representação. Um belo dia
chega à cidade um zepelim do qual desce um capitão que ameaça destruir a
população a menos que consiga os favores de Geni, a prostituta execrada por
todos. Ela se recusa e passa a ser assediada e bajulada hipocritamente pelas
autoridades, pessoas importantes como o prefeito, o bispo, o banqueiro e todos
os moradores para que aceite o capitão do zepelim. Acaba cedendo. O capitão,
satisfeito, vai embora. E todo povo da cidade volta a humilhá-la, cantando: Joga
pedra na Geni / joga bosta na Geni /ela é feita pra apanhar /ela é boa pra
cuspir /ela dá pra qualquer um / maldita Gení. Vejam aqui. A música Malandro, no início da ópera, é uma
paródia musical de Mack the Knife. Ouçam aqui.
Em
Toda Nudez Será Castigada, a
prostituta Geni, de Nelson Rodrigues, tem um sonho na vida: morrer de câncer no
seio. A peça, que estreou em 1965, relata a estória de uma família conservadora
na qual o pai casa com a prostituta que passa a ter intenso relacionamento
amoroso com o filho homossexual que faz todo o possível para terminar o
casamento do pai.
A
Jenny, na ópera Ascensão e Queda da
Cidade de Mahagonny
é do lado do mal, uma das causas que levaram à
destruição da cidade. Nas demais, é mais uma vítima dos contextos sociais
injustos e um veículo da crítica à hipocrisia e aos preconceitos,
principalmente contra a mulher.
Jenny/Geni
lembra Lilith, símbolo de mulher sedutora, desafiadora e má. Consta ter sido a
primeira esposa de Adão, anterior à Eva (mito do Talmud), que partiu do Paraíso
para regiões ignotas por não aceitar a obrigação de se submeter ao companheiro
uma vez que era feita da mesma matéria que ele, o barro. (Eva foi feita da
costela de Adão e como parte dele devia ser submissa.) O sentimento se estendia
à posição do ato sexual e no repúdio ao corpo do homem sobre o seu. Consta que Lilith
foi quem deu à Eva a maçã proibida.
No
dicionário Novo Michaellis, inglês-português, 32ª ed., Ed. Melhoramentos, v. 1,
pág. 555, diz o verbete: jenny – substant. comum fem. – fêmea; fêmea de
animais; Jenny-ass-substant. asna, besta, burra.  Jenny era portanto um jeito depreciativo de nomear
a mulher. Diante da prostituta, formalizava-se o preconceito maior. Ou seria, desde
sempre, preconceito contra todas as mulheres?

Não
é sensacional a pesquisa de Niomar? Os nossos aplausos!
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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