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A crise da arte contemporânea não se resume a uma disputa estética, mas revela uma alteração profunda no modo como o belo é compreendido, vivenciado e produzido. O que outrora foi símbolo de transcendência, revelação espiritual e mediação com o absoluto, hoje é frequentemente reduzido à lógica do consumo, da funcionalidade e da utilidade imediata. Para compreender a gravidade dessa mudança, é fundamental confrontar o pensamento de três autores centrais, Santo Agostinho, Kant e Oscar Wilde, cujas reflexões, cada qual à sua maneira, testemunham a profundidade filosófica que a arte já teve, e que, em grande parte, perdeu.
   Santo Agostinho, em suas Confissões, afirma: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei” (Confissões, X, 27). O belo, para Agostinho, é sinal da presença divina; é aquilo que desperta a alma para um movimento ascensional. A beleza não é mera aparência sensível, mas manifestação da ordem e harmonia criadas por Deus. Esta visão contrasta radicalmente com a arte atual, que muitas vezes renuncia a qualquer horizonte transcendental, preferindo a ruptura pura ou a provocação como fins em si mesmos.
   Santo Agostinho acrescenta que o belo se realiza quando há “unitas, modus et ordo”; unidade, medida e ordem. Esses critérios não são estéticos no sentido técnico, mas metafísicos: dizem respeito à estrutura mesma do real. A arte que se afasta de qualquer busca de ordem ou harmonia abandona, para Agostinho, sua vocação mais profunda. A perda de sacralidade na arte atual é, portanto, sintoma da perda de referência a uma ordem maior que a mera subjetividade.
   Kant, em sua Crítica da Faculdade do Juízo, entende o belo de modo distinto, mas igualmente profundo. Para ele, o belo suscita um prazer “desinteressado”, isto é, um prazer que não depende de utilidade nem de conceitos. Ele escreve: “Chamamos belo o objeto de uma satisfação universal sem conceito” (CFJ, §6). Esse desinteresse, paradoxalmente, eleva a arte à sua dignidade máxima, pois a liberta de finalidades externas. Mas o que vemos hoje é justamente o contrário: a arte se converteu em produto, marketing, decoração ou instrumento ideológico.
   Essa conversão da arte em instrumento contraria também outra formulação kantiana decisiva: o “finalidade sem fim”. A obra de arte, para ser autêntica, deve parecer dotada de finalidade interna, mas sem uma função pré-definida no mundo prático. A arte atual, porém, cada vez mais busca justificação em finalidades externas: impacto social, valor de mercado, ativismo, viralização. Com isso, desaparece o espaço do contemplativo, do gratuito, do encontro desinteressado com o belo.
   Se Agostinho aponta para o sagrado e Kant para o desinteresse, Oscar Wilde adiciona à discussão, uma defesa profunda da autonomia estética. No prefácio de O Retrato de Dorian Gray, ele afirma: “A arte é inútil”, frase frequentemente mal compreendida. Para Wilde, essa “inutilidade” significa exatamente que a arte não se subordina ao moralismo, ao utilitarismo ou ao pragmatismo. Ele escreve: “Nenhum artista deseja provar coisa alguma” e ainda: “Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo”. A arte exige distância das utilidades imediatas para florescer.
Wilde criticaria severamente o estado atual das produções culturais, marcadas pela submissão ao mercado e pela necessidade constante de agradar. Ele defendia que a arte só pode ser verdadeiramente bela quando livre, capaz de provocar pela forma e não pela utilidade. Para Wilde, quando a arte se torna propaganda, panfleto ou mero objeto de consumo rápido, ela perde sua aura, algo que também estaria alinhado com a crítica de Walter Benjamin, embora este seja outro debate.
   Ao colocar Agostinho, Kant e Wilde em diálogo, percebemos uma convergência: a arte só se realiza plenamente quando ultrapassa a lógica da utilidade. Para Agostinho, porque ela remete ao divino; para Kant, porque é contemplação desinteressada; para Wilde, porque sua autonomia é a garantia de sua grandeza. Todos, cada qual ao seu modo, sustentam que o belo é experiência interior, transformação do sujeito, sacralidade.
   A arte atual, no entanto, muitas vezes renuncia a esse horizonte. Sua perda de sacralidade deve-se ao abandono da beleza e de uma lógica cultural que transforma tudo em performance efêmera, tudo em funcionalidade, tudo em mercadoria. O belo deixa de ser uma via de elevação, pensamento ou profundidade, tornando-se um acessório do design ou uma estratégia de comunicação. Esvazia-se a profundidade espiritual, filosófica e sensível que sustentou séculos de estética.
    A crítica que emerge da comparação desses três pensadores é, portanto, urgente: precisa-se recuperar o sentido do belo, como experiência formativa. Uma arte que se reconcilie com a contemplação, com o desinteresse, com a ordem interior e com a liberdade criadora. Uma arte que busque sua vocação de abrir mundos, transformar consciências e elevar a sensibilidade humana. Sem isso, continuaremos habitando uma cultura visual saturada e espiritualmente empobrecida.

Marcos Valério Reis
Marcos Valerio Reis, jornalista, mestre em Comunicação, Doutor em Comunicação, Linguagens e Cultura, pós-doutor em Comunicação. Membro do Grupo de pesquisa Academia do Peixe Frito, pesquisador da arte literária na Amazônia e membro da Academia Paraense de Jornalismo.

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