Publicado em: 2 de novembro de 2025
O que lhe falta é letramento racial, dizem alguns membros do movimento negro sobre Vinícius Júnior, o jovem jogador, camisa 7 do Real Madrid, que está muito comentado nas imprensa nesta semana, em virtude de seu envolvimento pessoal com figuras das mídias digitais.
Será? Proponho aqui uma breve reflexão acadêmica.
Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior, o Vini Júnior, de quem falamos nesta coluna há pouco tempo, surgiu no cenário global do futebol como um prodígio técnico e como um sujeito cuja existência desafia, ao mesmo tempo em que subjaz, a dinâmica do capitalismo racial contemporâneo. Sua trajetória futebolística na Europa é marcada por 48 incidentes documentados de racismo entre os anos de 2018 e 2025 (La Liga, 2025), e não se resume a uma sucessão de agressões sofridas, mas constitui um processo de aprendizagem sobre violências reais e simbólicas que, retomando Guinier (2004) e Gomes (2017), se converte em consciência crítica e ato performático de resistência.
Quando dança após um gol, Vini não celebra apenas a vitória; ele reafirma uma “masculinidade negra insurgente” (Ferreira, 2023) contra o script desejável do atleta negro contido, silencioso e grato pela oportunidade de pertencer ao espaço branco do futebol europeu. Essa performatividade, rotulada de “provocação” por setores da imprensa e da torcida, é, na verdade, um gesto de reapropriação corporal que desestabiliza a norma imposta da contenção emocional branca.
Contudo, a agência política de Vini revela-se pesarosamente seletiva, operando dentro de uma ordem de capital simbólico temático (Bourdieu, 1986). Vini confronta Javier Tebas, inspira a criação da Lei nº 14.923/2025 e força a CBF a aderir a protocolos antirracistas, mas mantém um silêncio incômodo sobre o genocídio da juventude negra nas favelas cariocas, sobre as milícias que controlam seu território natal em São Gonçalo, de onde ele vem, ou sobre a precariedade das cotas raciais nas universidades.
Essa seletividade não é uma espécie de apatia, mas uma evidente estratégia de preservação de mercado. Denunciar o racismo nos estádios europeus é um risco calculado que eleva seu valor pessoal de atleta global; posicionar-se contra o Estado brasileiro exigiria um custo político que comprometeria seu trânsito livre no centro do sistema. A derrota na Bola de Ouro de 2024, interpretada por Santos (2024) como punição simbólica por sua voz ativa, politicamente direcionada para o sistema, apenas reforça a tese de que o futebol premia o negro excepcional, silencioso e pacífico, que brilha, mas não ilumina os caminhos para os que ficam para trás, dificultando a ascensão dos seus.
Essa contradição se aprofunda e se complexifica quando examinamos suas escolhas publicitárias, que aderem à sua marca pessoal. Em outubro de 2025, Vini Jr. associou-se a uma casa de apostas em parceria com influenciadores digitais, um movimento que insere sua imagem no capitalismo de plataforma racializado (Benjamin, 2019). O setor de apostas online, que drena bilhões das periferias negras e pardas brasileiras, transforma a vulnerabilidade socioeconômica em lucro privatizado. A ausência de cláusulas de responsabilidade social nos contratos, diferentemente de LeBron James, que destina parte de seus ganhos à I Promise School, ou de Marcus Rashford, que mobilizou recursos contra a fome infantil, revela uma “predação consentida”. Devemos considerar aqui a atuação da assessoria do atleta, que agencia parte de sua carreira, mas sem isentá-lo de sua associação a jogos de azar, tema muito explorado pela mídia atualmente.
O mesmo corpo negro que denuncia o racismo nos estádios torna-se vetor de exploração econômica das comunidades de onde emergiu, predando-as sob o dispositivo da confiança dos seus em sua persuasão publicitária. A campanha “Raízes de Ouro”, que em 2024 revelou sua ancestralidade Tikar por meio de um teste de DNA financiado pela CBF, exemplifica o mesmo padrão: um gesto potente de resgate de sua ancestralidade é apropriado institucionalmente pelo atleta para fins de marketing esportivo, sem que Vini invista recursos próprios em programas de genealogia acessível ou em educação antirracista.
Aqui reside o cerne da questão: Vini Júnior não se mobiliza coletivamente, nem mobiliza recursos em instituto ou programa de longo prazo voltado à coletividade negra. Suas ações filantrópicas são pontuais, midiáticas e desinstitucionalizadas: doações de uniformes, visitas esporádicas a escolinhas e publicações de solidariedade. Em comparação, Pelé criou o Instituto Pelé e Neymar mantém a Fundação Neymar Jr., em Praia Grande. Vini não converte seu capital econômico e simbólico em capital social reprodutivo. Essa lacuna revela um projeto individual de poder, e a ascensão pessoal torna-se o fim último, não o meio para a emancipação coletiva. Ele utiliza a dor estrutural do racismo como escudo simbólico para consolidar sua marca global dentro da máquina capitalista, por meio de contratos com Nike, EA Sports e casas de apostas, mas não pavimenta o caminho para que outros negros ascendam junto.
Essa dinâmica expõe certo tokenismo meritocrático (Bell, 1980) em sua forma mais sofisticada. O sistema tolera, e até celebra, a mobilidade ascendente de um negro excepcional, desde que ele não altere as regras do jogo nem traga consigo a coletividade. Vini Jr. torna-se, assim, um exemplo de que é possível vencer dentro das estruturas existentes, legitimando a exclusão dos milhões que permanecem presos nas engrenagens do racismo estrutural. Sua luta é necessária, mas impotente para a transformação histórica. Ao contrário, serve à manutenção do status quo, porque ajuda a legitimar o discurso meritocrático. Denunciar o racismo nos estádios é um ato de coragem; institucionalizar poder coletivo de mobilização de recursos, por meio de fundações, redes de solidariedade e pressão política contínua, é um ato revolucionário. Isso, Vini Jr. ainda não faz.
Enquanto ele se mobiliza e vence as estruturas sozinho, o sistema aplaude o negro que “deu certo” e valida a meritocracia branca, silenciando a crítica estrutural. A luta antirracista, porém, não se resolve em vitórias individuais. Ela exige a construção de infraestruturas de poder negro para além da celebridade, que se ramifiquem na coletividade. Até que Vini Jr., ou outro ícone de sua geração, simbolize sua ascensão como alavancagem estrutural, sua resistência permanecerá um gesto solitário e impotente para o coletivo, dentro de um cenário roteirizado pelo capital racial branco.
Para finalizar, considero a atuação pública e as ligações institucionais do atleta Vini Jr. como síntese e sintoma do capitalismo contemporâneo: um corpo insurgente dentro de uma máquina que absorve e neutraliza sua potência transformadora.
REFERÊNCIAS
BELL, D. “Brown v. Board of Education and the Interest-Convergence Dilemma”. Harvard Law Review, [S.l.], v. 93, n. 3, p. 518–533, 1980.
BENJAMIN, R. Race after Technology: Abolitionist Tools for the New Jim Code. Cambridge: Polity Press, 2019.
BOURDIEU, P. The Forms of Capital. In: RICHARDSON, J. G. (ed.). Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. New York: Greenwood, 1986. p. 241–258.
FERREIRA, A. Futebol e Masculinidades Negras. São Paulo: Annablume, 2023.
GOMES, N. L. O Movimento Negro Educador. Petrópolis: Vozes, 2017.
GUINIER, L. “From Racial Liberalism to Racial Literacy: Brown v. Board of Education and the Interest-Convergence Dilemma”. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, [S.l.], v. 67, n. 1, p. 92–118, 2004.
LA LIGA. Relatório Anual de Incidentes Racistas 2024/2025. Madrid: La Liga, 2025. Disponível em: https://www.laliga.com/transparencia. Acesso em: 2 nov. 2025.
SANTOS, J. “Bola de Ouro e Punição Simbólica: Racismo e Hierarquias no Futebol Global”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Florianópolis, v. 46, p. 1–15, 2024. DOI: 10.1590/0101-32892024v46p1.



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