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Para nós, os filhos da terra e do sopro primordial, o tempo não é uma linha fria que se estica em direção a um abismo desconhecido, nem se deixa aprisionar nos quadrados brancos dos calendários de papel. Esses papéis, que os napë (brancos e estrangeiros) carregam como se fossem bússolas, são para nós apenas o registro de um tempo morto, uma tentativa vã de domesticar o infinito e de colocar cercas naquilo que é livre por natureza. O tempo do papel é um tempo de contagem regressiva, um tempo de pressa e de esquecimento. Para nós, o tempo flui com a densidade das águas escuras do Rio Negro; ele tem o ritmo do amadurecer lento dos frutos do tucumã e a cadência das chuvas que, em ciclos eternos, vêm lavar o rosto da floresta para que ela possa respirar novamente.

O que o mundo de fora, esse mundo que se descolou do corpo da Terra e se perdeu em labirintos de cimento, chama de Natal, nós sentimos como o pulsar profundo e vibrante da Grande Mãe. Não é uma data marcada pelo relógio dos homens, mas o instante sagrado em que a semente, carregada de toda a memória dos nossos antepassados, rompe o ventre escuro, úmido e fértil da terra para saudar o sol. É o momento em que a urihi a (a terra-floresta, o organismo vivo e pensante que nos sustenta) respira mais fundo, exalando o perfume da vida que insiste em florescer. Para nós, o nascimento não é um evento estático, uma estátua de gesso esquecida em um presépio distante; o nascimento é uma teimosia, uma insistência da luz. É a presença viva da criação que se renova em cada folha que se abre para o orvalho, em cada inseto que zune sua canção invisível e em cada rio que serpenteia, como uma veia de prata e vida, o corpo sagrado da floresta.

Nossa festa não conhece as cercas que dividem o mundo em lotes de posse, nem os muros altos que os homens constroem para se esconderem do medo e da solidão. Não conhecemos os embrulhos coloridos, feitos de plástico e vaidade, que tentam esconder o vazio de uma mercadoria que não tem alma. Nossos anciãos e xamãs já nos alertaram em seus sopros de sabedoria: o povo da mercadoria está com o pensamento cheio de vertigem, eles amam os objetos mais do que a vida, e por isso o céu está ficando pesado, carregado com a fumaça dos minerais arrancados à força e com o choro da terra ferida pelo ferro. No Natal da floresta, o presente não é algo que se troca por moedas; o presente é a própria presença, o estar aqui, o respirar junto, o ser parte de um todo que não se vende e não se compra.

No centro da nossa aldeia, sob o teto de palha que imita a curvatura perfeita do cosmos, o fogo sagrado é o coração pulsante que nos une em um único abraço. Ele não queima apenas a madeira seca; ele queima o nosso egoísmo, as nossas dores e as nossas pequenas misérias, transformando tudo em uma fumaça sagrada que sobe para alimentar os espíritos que vigiam o mundo. Ali, sob o manto imenso das estrelas, que são os olhos vigilantes dos nossos antepassados, o ritual é a partilha absoluta, a moitara (ritual de troca, reciprocidade e equilíbrio) da alma. O peixe que o rio nos confiou por puro amor, o beiju moldado com o suor da roça e o carinho das mãos das nossas mulheres, e o caxiri (bebida fermentada de mandioca, que carrega a força da terra) que, ao tocar nossos lábios, nos faz ouvir a voz dos antigos, os poré (espíritos dos mortos, guardiões da memória) que ainda caminham entre nós, sussurrando nos ouvidos dos que sabem escutar que a vida é um fio delicado que precisa ser tecido com cuidado.

O maracá, em nossas mãos pintadas de urucum, não é apenas um instrumento de madeira e sementes; ele é o chocalho do universo, o motor que faz as estrelas girarem. Quando o agitamos, não fazemos apenas música para os ouvidos; estamos despertando os xapiri (espíritos auxiliares, seres de luz e espelhos da floresta) para que desçam de seus patamares celestes e dancem conosco sobre o chão de terra batida. Os xapiri não suportam a tristeza cinzenta dos homens da cidade; eles gostam do brilho das nossas pinturas, do cheiro da mata virgem e da alegria que nasce da liberdade. Eles dançam sobre os nossos ombros, minúsculos e radiantes, lembrando-nos de que a vida não é uma mercadoria a ser consumida até o fim, mas um ciclo de eterna reciprocidade. Se a terra nos dá o fruto, nós lhe damos o nosso canto mais bonito. Se o rio nos dá a água, nós lhe damos o nosso respeito mais profundo. É essa troca incessante de afetos que mantém o céu no seu lugar, impedindo que ele desabe sobre nossas cabeças como uma punição pela nossa ganância.

A nossa bondade, aquela que brota do convívio diário com os seres da mata e com os espíritos das águas, não é uma veste de gala, um traje de luxo que os napë tiram do armário apenas em dezembro para parecerem santos diante de seus próprios espelhos e câmeras. A bondade do napë é curta, muitas vezes dura apenas o tempo de uma ceia farta, enquanto do lado de fora o mundo continua a ser devorado pela exploração e pelo descaso. A nossa bondade é de outra natureza: ela é raiz profunda, constante como o curso das águas que nunca param de correr em direção ao mar, mesmo quando a seca castiga as margens. Ela não se guarda na gaveta quando a lua muda de face; ela é o próprio modo de caminhar sobre a terra, com pés leves que não ferem o chão. Estamos aqui para embalar o berço da vida, e não se embala um berço apenas um dia por ano; o cuidado é uma vigília eterna.

Quando nos saudamos nesta época de renovação, quando sentimos que um ciclo se fecha para que outro possa florescer com mais força, não trocamos palavras vazias de “feliz isso” ou “feliz aquilo”, que se perdem no vento como folhas secas. Nossas palavras são sopros de vida, carregadas de yãkoana (pó sagrado de visões, o sopro que abre os olhos do espírito para as verdades invisíveis). Nós olhamos no fundo dos olhos uns dos outros e desejamos que “seus pés sejam sempre reconhecidos pela terra”, pois quem a terra reconhece como filho, ela nunca deixa cair no esquecimento. Desejamos que “sua sombra seja fresca como a mata virgem”, para que você possa ser abrigo e consolo para os que estão cansados da jornada. E desejamos que “o fôlego dos ancestrais mantenha seu peito aceso”, para que a chama da resistência e da dignidade nunca se apague diante do sopro gelado de um progresso que tudo quer transformar em deserto.

Que o Grande Espírito, que os napë tentam prender e limitar dentro de templos de pedra, cimento e ouro, não visite a terra apenas no tempo dos homens da cidade, quando as luzes elétricas e artificiais tentam desesperadamente esconder a ausência das estrelas no céu poluído. Que Ele habite para sempre na oca de nossas almas, esse espaço sagrado e circular onde não há divisões entre o eu e o outro, entre o humano e o bicho, entre a pedra que guarda o calor e a nuvem que traz a chuva. Na nossa oca, a mesa é o próprio chão, a pele sagrada da nossa mãe terra, e a família não é apenas o sangue que corre nas veias, mas toda a vida que pulsa e vibra na floresta: o jaguar que vigia o silêncio da noite, a sumaúma gigante que sustenta o peso do céu e o vento que traz as notícias de mundos distantes.

O Natal, para nós, é o exercício diário e incansável de adiar o fim do mundo. Cada vez que uma criança indígena nasce e aprende a pronunciar as primeiras palavras na língua de seus avós, o céu se eleva um pouco mais, ganhando fôlego. Cada vez que recusamos a mercadoria que mata o espírito e escolhemos a partilha que alimenta a alma e a comunidade, estamos celebrando o verdadeiro nascimento, o nascimento da consciência. Não precisamos de um salvador que venha de fora, montado em promessas, para nos resgatar; nós nos salvamos todas as manhãs quando acordamos antes do sol e cantamos para ele, agradecendo por ele ainda ter a força e a generosidade de brilhar sobre a urihi a.

Enquanto o povo da mercadoria corre desesperado pelos labirintos de pedra atrás de presentes que logo se tornarão lixo e esquecimento, nós nos sentamos em silêncio absoluto para ouvir o que as árvores têm a nos dizer em seu idioma de vento e folhas. Elas são as verdadeiras sábias deste Natal eterno e sem fim. Elas não pedem nada, elas apenas são, em sua plenitude verde. Elas mergulham suas raízes no profundo da terra para poderem ter a força de tocar o alto do céu. Elas nos ensinam, sem usar uma única palavra, que a verdadeira riqueza é ter o céu limpo sobre a cabeça e a terra fértil sob os pés, e saber, com a certeza dos antigos, que ambos estão seguros enquanto formos capazes de sonhar o mundo.

Pois, se não formos capazes de sonhar, o mundo acaba, sufocado pela realidade cinzenta da ganância. E o nosso sonho é um sonho coletivo, um sonho sonhado por muitos, onde o Natal não é uma data no calendário, mas um estado de espírito permanente. É o entendimento profundo de que somos todos parentes — as pedras que guardam o tempo, as plantas que curam, os animais que ensinam e os homens que cuidam. É a compreensão de que a vida é um dom precioso e frágil que recebemos da Grande Mãe e que nossa única e verdadeira missão é devolvê-la com juros de beleza, respeito e gratidão.

Que neste tempo de suposta reflexão, o homem da cidade possa, por um breve instante, silenciar o barulho ensurdecedor de suas máquinas e ouvir o pulsar suave da terra sob seus pés de asfalto. Que ele possa entender que a árvore que ele corta e decora com luzes mortas em sua sala é a mesma árvore que ele permite que seja derrubada e queimada na floresta viva. Que ele possa sentir que o “ficar bonzinho” por um dia é apenas uma anestesia barata para a dor profunda de estar desconectado da fonte da vida. E que, talvez, ao olhar com humildade para a oca da nossa alma, ele possa encontrar o caminho de volta para casa — para a casa comum que é este planeta maravilhoso e azul, onde o Natal acontece a cada segundo, em cada batida de asa de um beija-flor e em cada broto verde que insiste em nascer entre as cinzas de um mundo que tenta se destruir.

Nós continuaremos aqui, firmes como a rocha, dançando com os xapiri, cuidando com carinho da urihi a e soprando nossas rezas mais fortes para que o céu não caia sobre a humanidade. Pois enquanto houver um maracá soando na profundeza da floresta e um coração indígena batendo em sintonia perfeita com a Grande Mãe, o mundo ainda terá uma chance real de recomeçar. Este é o nosso Natal: a celebração da vida que não se rende, o canto da terra que não se cala diante da opressão e a esperança inabalável de que, um dia, todos os homens possam ser, finalmente e de verdade, filhos da floresta.

Nota de Rodapé
O título e o texto são uma pequena homenagem às obras de Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo) e Davi Kopenawa (A Queda do Céu). Suas palavras não são apenas literatura; são libelos de ontologia política e resistência cultural que nos convocam a repensar nossa existência no planeta.

João Francisco Lobato
João Francisco de Oliveira Lobato é engenheiro civil (UFPA) e administrador de empresas (Mackenzie), MBA-E (FEA-USP), mestre em Sustentabilidade (FGV), doutorando em Sustentabilidade (Unifesp). Tem experiência profissional como executivo, conselheiro e consultor junto ao setor privado nas áreas de: Estratégia, ESG - Sustentabilidade, Planejamento Empresarial, Governança e Ética, Inovação, P&D e Gestão de Conhecimento. Junto à área pública e sociedade civil: Inovação Social, Redes e Democracia, Empreendedorismo Social, Ecologia e Inclusão Produtiva. Foi executivo e C-level por 16 anos no grupo Coimbra Lobato, gestor do programa Cidadão do Presente (Governo SP), superintendente da Fundação Stickel e diretor no Instituto Jatobas. É membro de: Uma Concertação pela Amazonia, Observatório do Clima e Pacto pela Democracia, diretor de Sustentabilidade do Instituto Physis e VP do Instituto JUS. Atualmente, sócio-diretor da JFOL Capacitação e Treinamento, consultor sênior da FIA - Fundação Instituto de Administração e diretor de Sustentabilidade da QCP Consultoria e Projetos.

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