Publicado em: 21 de dezembro de 2025
Tive o prazer e o privilégio de ir ao teatro Cuíra assistir a fantástica encenação do texto de Nelson Rodrigues, “Doroteia”, encenada pelo Gruta de Teatro, com um elenco de estrelas, Iracy Vaz, Kristara, Alessandra Pinheiro, Zê Charone e dirigida pelo magnifico Adriano Barroso. A qualidade interpretativa do elenco nos move para momentos de tensão e riso, um espetáculo Literal. Feita as referências devidas ao elenco, vamos pensar no que nos reserva o texto Dorotéia.
Podemos dizer que o texto se inscreve no conjunto das chamadas “tragédias cariocas” de Nelson Rodrigues, nas quais o espaço doméstico funciona como microcosmo das contradições sociais brasileiras. A casa das viúvas, fechada ao mundo, representa uma sociedade regida pela negação do desejo e pela sacralização da culpa, provocativamente direcionada a refletir valores patriarcais profundamente enraizados no imaginário social urbano do século XX.
O texto expõe a moralidade como instrumento de controle social. As personagens femininas vivem sob um regime de vigilância simbólica permanente, em que o corpo e o prazer são considerados ameaças à ordem. Nelson Rodrigues dramatiza, assim, a violência silenciosa das normas sociais, sobretudo aquelas impostas às mulheres. Neste sentido, Dorotéia surge como figura disruptiva. Ao contrário das personagens, ela carrega no corpo a marca do desejo vivido, o que a transforma em sujeito marginal dentro daquela bolha de universo moralista. Sua presença evidencia como a sociedade pune quem ousa transgredir os pactos tácitos de pureza, recato e submissão, mesmo quando esses pactos produzem sofrimento coletivo.
A obsessão das personagens pelo rosto coberto, pela feiura e pela supressão do erotismo revela um mecanismo social de negação dos impulsos da vida. Do ponto de vista psicológico, observa-se uma neurose coletiva: o desejo não desaparece, apenas retorna de forma distorcida, sob a forma de medo, histeria e culpa obsessiva.
A maternidade, em Dorotéia, é destituída de afeto e erotismo, convertendo-se em instrumento de perpetuação da moral repressiva. Nelson Rodrigues critica o modelo familiar que transforma a mulher em reprodutora de valores opressores, educada para reproduzir o sofrimento como herança moral.
O repulsa ao corpo masculino, recorrente na peça, aponta para uma relação social marcada pela interdição do encontro. Além da repulsa sexual, provoca a pedagogia do medo, que ensina às mulheres que o desejo é perigoso e deve ser anulado.
Dorotéia, ao aceitar o apagamento de sua beleza como condição de pertencimento, revela o grau de violência simbólica exercida pela coletividade.
Dorotéia permanece atual justamente por revelar como estruturas sociais opressoras sobrevivem sob novas roupagens. A peça não fala apenas de um tempo passado, mas de uma sociedade que ainda teme o corpo, o prazer e a autonomia feminina, transformando a moral em instrumento de dominação.
A montagem de Dorotéia realizada pelo Gruta de Teatro, dialoga com a tradição rodrigueana ao enfatizar o caráter alegórico e simbólico do texto. A espetacular encenação valoriza o claustro social como espaço de opressão, aproximando o público da atmosfera sufocante que o texto emana e privilegia o conflito entre corpo e norma, fazendo da personagem Dorotéia um signo trágico da mulher que tenta negociar sua existência entre desejo e pertencimento social.



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