Publicado em: 10 de dezembro de 2025
A escrita desse texto surge a partir de fatos acontecidos nesses dias. O que me fez pensar sobre o colonialismo que persiste em nosso cotidiano. O tema não é inédito, lembro de dois professores que com suas óticas estabelecem olhares para a decolonialidade. A professora Vânia Torres em seu texto, “a Amazônia narrada: entre passado e presente quase nada mudou” e o professor e sociólogo, Antônio Maia que labuta em sala de aula do ensino superior descortinando a decolonialidade. Temáticas urgentes e necessárias para reverter olhares destorcidos e monocular de nossa cultura e nossas vivências. Vamos aos fatos.
O episódio envolve um apresentador de televisão, no qual orienta indígenas a esconderem celulares e a usarem roupas “tradicionais” para não “sujar” a imagem da cultura, é um retrato claro do que a teoria da decolonialidade denuncia: a permanência do olhar colonial como lente que define quem o Outro deve ser.
Ainda que não haja intenção explícita de ofensa, a fala do apresentador evidencia a lógica pela qual sujeitos não indígenas se sentem autorizados a determinar a autenticidade de povos originários. A decolonialidade nasce justamente para romper esse direito autoproclamado de definição.
O conceito de colonialidade do saber (Quijano) ajuda a entender o gesto do apresentador. Ele assume para si o poder de dizer como indígenas “devem” aparecer, ignorando que eles próprios são os detentores do conhecimento legítimo sobre sua cultura. Quando ele orienta que escondam celulares, parte da ideia de que sabe mais do que eles sobre o que é “ser indígena”. Esse é o núcleo da colonialidade: o saber do “homem branco” urbano é visto como superior e autorizado a organizar a identidade do Outro.
Também está presente a colonialidade do ser que reduz o indígena a um objeto de performance. Não interessa quem aquelas pessoas são no cotidiano; interessa apenas que correspondam à imagem indígena que a televisão quer exibir. Ao solicitar que se encaixem em um figurino pré-definido, reforça a lógica colonial que impede povos indígenas de existirem plenamente na contemporaneidade. É como se eles só fossem “indígenas legítimos” quando parados no passado.
A fala do apresentador reativa uma crença colonial antiga: a ideia de “pureza cultural”. Os colonizadores sempre exigiram que povos indígenas permanecessem imutáveis, como se a mudança cultural fosse sinônimo de “contaminação”. Ao reclamar que o celular “sujaria” a cultura, ele repete essa lógica, ainda que de maneira inconsciente. Basta lembrar da Carta de Pero Vaz de Caminha em um de seus trechos dirigindo-se aos indígenas: “precisamos Salvar essa gente” .
Para a decolonialidade, esse é um equívoco profundo: culturas são dinâmicas, vivas, e a tecnologia não elimina identidade, ao contrário, pode fortalecê-la.
Do ponto de vista da colonialidade da representação, conceito associado a Mignolo, o episódio mostra como a mídia ainda produz imagens coloniais do indígena, fato evidenciado no texto da professora Vania Torres. O apresentador não dialoga com a autoria indígena sobre sua própria imagem; ele dirige, controla, organiza. Em vez de permitir que indígenas se representem como sujeitos, ele os captura como elementos visuais que compõem um programa televisivo. É o velho mecanismo colonial reeditado no século XXI.
É por isso que Mignolo fala em ferida colonial: a dor provocada quando identidades são sistematicamente deslegitimadas. Ao sugerir que celulares “poluem” a cultura, desqualifica as formas contemporâneas de existir indígena. A ferida se abre quando alguém afirma que aquilo que você é hoje, no presente, não é “bom o suficiente” para ser reconhecido como parte da sua identidade. Isso é violência simbólica típica do colonialismo. Por outro lado, a decolonialidade nos obriga a olhar para a estrutura social que sustenta esse gesto. O apresentador não está sozinho: ele representa um país que ainda enxerga indígenas como figuras folclóricas, como se estivessem congelados no século XVI. A televisão, a publicidade e a cultura de massa reforçam esse imaginário. O episódio A além de um desvio; é um sintoma de uma sociedade inteira ainda presa ao colonialismo mental.
O conceito de desobediência epistêmica (Mignolo) aponta o caminho para compreender a gravidade do caso. Para romper com a colonialidade, é preciso desafiar as formas tradicionais de autoridade sobre o saber. Isso significa reconhecer que os povos indígenas têm o direito de decidir como querem aparecer, como querem ser representados e qual imagem corresponde à sua identidade.
Assim, relacionar o episódio à decolonialidade significa compreender que ele não é apenas sobre uma questão midiática, mas sobre uma disputa de poder: quem decide o que é cultura indígena? Quem define o que é autenticidade? Quem tem voz para narrar o Outro? A teoria decolonial denuncia exatamente esse ponto: enquanto não houver mudança continuará havendo repetição de violências simbólicas naturalizadas.
O caso do apresentador expõe a necessidade urgente de uma postura decolonial no Brasil. Não basta valorizar a “cultura indígena”, é preciso reconhecer a autonomia indígena. Não basta exibir povos originários é preciso permitir que eles se representem. A decolonialidade aponta para o caminho do respeito que se realiza quando abandonamos o direito de definir o Outro e passamos a ouvi-lo, quando deixamos de moldar culturas para nossas telas e permitimos que elas existam por si mesmas, no presente, com sua complexidade, diversidade e movimento.



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