Publicado em: 4 de dezembro de 2025
No Livro XI das Confissões, Santo Agostinho enfrenta um dos problemas mais profundos da filosofia: o estatuto do tempo. Sua reflexão parte de uma inquietação existencial, “Quid est ergo tempus?”, “O que é, pois, o tempo?” e avança para uma compreensão espiritual em que passado, presente e futuro não possuem ser próprio, mas subsistem graças à alma humana. Nesse movimento, Agostinho reconhece que o tempo, por si, escapa; e nós, enquanto criaturas finitas habitamos um fluxo que nega continuamente nossa permanência.
Ele afirma: “O passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente não permanece”. Essa constatação, embora simples, desestabiliza nossa noção intuitiva de existência temporal. Se nada do que chamamos “tempo” realmente é, como podemos falar dele? Agostinho vê nessa fugacidade uma espécie de negação do ser. O tempo esvai-se no exato instante em que tentamos detê-lo. O “agora”, ao ser pensado, já não está. Esse descompasso revela que o ser humano vive num terreno instável, sempre projetado para além de si.
Para resolver o enigma, Santo Agostinho desloca a análise do mundo exterior para o interior da alma. “Há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.” Nessa frase célebre, ele recusa a percepção vulgar de três dimensões independentes do tempo. Todos os tempos vivem no presente: o passado como memória, o presente como intuição, o futuro como expectativa. Assim, o tempo não é um contêiner cósmico, mas um modo de afetação da consciência.
O “presente do passado”, diz ele, é aquilo que permanece como vestígio na memória. Mas essa memória não conserva o ser do que foi; conserva apenas uma sombra. “Não veríamos as pegadas se elas não estivessem em nós”, afirma Agostinho. O passado, portanto, é uma ausência que deixamos viver dentro de nós. Ele só existe à medida que o lembramos; o que evidencia outra forma de negação: o passado não é mais, mas insiste como ferida, marca, imagem.
O “presente do futuro”, por sua vez, manifesta-se como expectativa. Agostinho escreve: “As coisas futuras não são; mas podem ser esperadas.” Aqui se revela a dimensão humana da incompletude: vivemos projetados para aquilo que ainda não é. Esperamos, tememos, desejamos e nessas projeções construímos o esboço de um tempo que não possui existência própria. O futuro é ausência tensionada, promessa incerta, inquietação permanente.
O “presente do presente” aparece como o instante mais frágil e, paradoxalmente, o mais enigmático. Agostinho nota que, se dividirmos o presente, ele se dissolve: “Se o presente fosse sempre presente, não seria tempo, mas eternidade.” Assim, o presente, por ser tempo, é negação contínua. Ele não se sustenta; ele morre incessantemente. Essa constatação o leva a entender que só Deus eterno, sem antes nem depois possui verdadeiro ser.
A partir dessa reflexão, o filósofo reconhece que nossa vida temporal é marcada pela falta, pela perda e pela instabilidade. Habitamos memórias que não traduzem o real plenamente e expectativas que não garantem nenhum amanhã seguro. Essa oscilação revela a condição humana como uma trajetória entre sombras e antecipações, incapaz de se fixar. O tempo, em Agostinho, torna-se um espelho da própria vulnerabilidade do existir.
No entanto, sua análise não se encerra na constatação da negação. Ele afirma: “Em Ti, meu Deus, nada passa.” O contraste entre o ser eterno de Deus e o não-ser do tempo humano ilumina a tensão espiritual que move toda a obra. Não somos seres eternos e, portanto, não podemos alcançar plenitude no tempo. Nossa busca pelo sentido, pela estabilidade e pela verdade aponta sempre para além de nós e para aquilo que não passa.
Nesse sentido, o tempo ganha um valor profundamente humano. Nossas memórias moldam quem somos; nossas expectativas impulsionam nossos passos; e o presente, mesmo breve, é o único lugar onde podemos amar, agir e escolher. A fragilidade temporal, longe de ser um castigo, torna-se convite à consciência, à responsabilidade e à transcendência.
Assim, o Livro das Confissões oferece uma das mais impactantes reflexões sobre o tempo: uma filosofia que nasce da inquietação humana atravessa a negação do ser temporal e desemboca na abertura para o eterno. Ao reconhecer que passado e futuro são modos do coração e que o presente se dissolve no instante. Agostinho nos lembra que existir é abraçar a própria finitude sem perder de vista aquilo que nos ultrapassa.



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