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Nas entranhas da Amazônia, onde as águas esmeralda do Tapajós se abraçam ao barrento gigante Amazonas, reside um lugar de memória profunda, um epicentro de civilização que desafia as narrativas simplistas do “descobrimento”. Este é Ocará-Açu, o “Grande Lugar Sagrado”, um nome que ecoa a grandiosidade de uma história milenar, muito antes de qualquer bandeira europeia tocar suas margens.

Aqui, a paisagem não é apenas cenário, mas um livro aberto, cujas páginas de terra preta e rios sinuosos contam a saga de povos que moldaram e foram moldados por este vasto e vibrante ecossistema. A confluência dos rios, as praias de areia branca que surgem e somem com as estações, a várzea fértil e os igapós misteriosos, tudo isso compõe a fundação cultural de uma complexidade social e espiritual que ainda hoje ressoa.

A arqueologia desvela camadas de um passado glorioso, revelando que Ocará-Açu foi o lar de sociedades altamente organizadas, cujas inovações tecnológicas e sociais rivalizavam com as de outras grandes civilizações do mundo. A “terra preta”, um solo antropogênico de fertilidade extraordinária, é a cicatriz ecológica viva dessa engenharia ancestral, testemunho de uma agricultura intensiva e sustentável que alimentou populações densas por milênios.

Eduardo Góes Neves, um dos mais renomados arqueólogos da Amazônia, tem demonstrado como essas terras não são apenas um acidente natural, mas o resultado de um conhecimento profundo e de uma interação deliberada com o ambiente, transformando a floresta em um jardim produtivo. Além da terra preta, os “monumental earthworks” ou tesos, elevações artificiais que pontuam a paisagem, sugerem uma organização social capaz de empreendimentos coletivos de grande escala, com propósitos que variam de defesa a rituais e habitação.

Entre os povos que habitaram e ainda habitam esta região, os Tapajó se destacam pela sua arte cerâmica, um legado de beleza e sofisticação inigualáveis. A tradição “Incised and Punctate”, caracterizada por incisões e pontuações delicadas, transformava a argila em vasos funerários que não eram meros recipientes, mas narrativas cosmológicas, guardiãs de espíritos e memórias. O muiraquitã, uma pedra verde ou esverdeada polida em forma de sapo ou outros animais, era um artefato de poder e prestígio, um amuleto que transcendia o material, conectando o portador ao sagrado e ao ancestral. Os pacarás cerimoniais, grandes vasos decorados, eram utilizados em rituais complexos, evidenciando uma vida espiritual rica e uma organização social que valorizava a arte como expressão do divino e do comunitário.

A sofisticação cultural dos Tapajó, com sua cerâmica elaborada e seus rituais intrincados, é um testemunho da complexidade de suas sociedades. A rede de interações em Ocará-Açu estendia-se muito além dos Tapajó. Povos como os Tupaiu, os Arapiun e os Borari eram elos vitais em um sistema sofisticado de trocas e comércio que conectava vastas regiões da Amazônia. Essa teia de relações não se limitava a bens materiais; envolvia também o intercâmbio de conhecimentos, rituais e tecnologias, criando uma cultura amazônica interligada e dinâmica.

Os Munduruku, por sua vez, eram guerreiros renomados, cuja organização social e militar era notável. Suas “equiçás”, casas dedicadas a guerreiros distintos, e o ritual do “pariná”, a mumificação de cabeças de inimigos, demonstram uma cultura de guerra e honra profundamente enraizada. As tatuagens, complexos desenhos corporais, serviam como marcadores de status e identidade, narrando a história individual e coletiva de seus portadores.

Os Apiacá, com seu profundo conhecimento da floresta, foram mestres na domesticação de plantas, transformando a mandioca, o açaí e a pupunha em pilares de sua subsistência e cultura. Suas estruturas sociais, que incluíam a poligamia, refletiam uma organização complexa adaptada às necessidades e recursos do ambiente amazônico.

Os Mawé, guardiões florestais por excelência, detinham um conhecimento medicinal e ecológico profundo, utilizando o guaraná sagrado não apenas como estimulante, mas como parte integrante de seus rituais e cosmologia. Sua relação simbiótica com a floresta é um exemplo de como os povos indígenas viveram em harmonia e prosperidade com a natureza, sem exauri-la.

Os Arapiun, por sua vez, desempenhavam um papel crucial na articulação das redes de trocas comerciais, facilitando o fluxo de bens e ideias entre diferentes grupos, consolidando a região como um centro de intercâmbio cultural e econômico.

A chegada dos europeus, a partir do final do século XV, marcou um ponto de inflexão, mas não o fim, da história de Ocará-Açu. Em 1542, Francisco de Orellana, em sua primeira expedição pelo Amazonas, encontrou os Tapajó, registrando a existência de uma sociedade próspera e organizada. Seus relatos, embora filtrados pela perspectiva europeia, não puderam ignorar a grandiosidade das aldeias e a complexidade cultural que testemunhou. Séculos mais tarde, entre 1895 e 1896, o explorador francês Henri Coudreau realizou uma “Viagem ao Tapajós”, documentando etnograficamente os povos da região, oferecendo um vislumbre valioso de suas vidas e costumes, embora já sob o impacto da colonização.

Historiadores como Arthur Cezar Ferreira Reis, em sua obra “Santarém: Seu Desenvolvimento Histórico”, e arqueólogos como Eduardo Góes Neves, com suas pesquisas sobre a “Arqueologia da Amazônia”, têm sido fundamentais para resgatar e reinterpretar essa rica tapeçaria histórica, desafiando as narrativas eurocêntricas que por muito tempo silenciaram a voz dos povos originários.

A perspectiva decolonial é essencial para compreender Ocará-Açu não como um espaço a ser “descoberto”, mas como um centro de agência e inovação. A história das Icamiabas, as lendárias mulheres guerreiras, embora muitas vezes relegada ao mito, aponta para a existência de sistemas de autoridade feminina e para a complexidade de gênero nas sociedades amazônicas, desafiando a visão patriarcal imposta pela colonização.

Ocará-Açu, em sua essência, representa a resiliência e a capacidade de reinvenção dos povos da Amazônia. Seu legado de conhecimento ecológico profundo, agricultura intensiva e sustentável, e uma rica vida espiritual e social, continua a inspirar. A paisagem, com seus rios como veias e a floresta como pulmão, permanece como um testemunho vivo de uma civilização que floresceu em harmonia com seu ambiente, oferecendo lições inestimáveis para o presente e o futuro.

O coração ancestral da Amazônia pulsa, lembrando-nos que a verdadeira riqueza reside na diversidade e na sabedoria dos povos que a guardam.

Nota de rodapé
Pesquisas recentes conduzidas por pesquisadores como Claide de Paula Moraes e Márcio Amaral, da UFOPA, revelam que Ocará-Açu funcionava como um centro de urbanismo radical, onde a engenharia ambiental indígena transcendia a mera subsistência, configurando uma paisagem inteiramente transformada pela ação humana consciente. As escavações na Praça Rodrigues dos Santos e adjacências documentam evidências de planejamento urbano sofisticado, com setores especializados, espaços cerimoniais e sistemas de drenagem que sugerem uma população de aproximadamente 60 mil habitantes— possivelmente a maior aglomeração urbana do Brasil pré-descobrimento — hierarquicamente organizada e densamente distribuída, ecoando os achados de Anna Roosevelt e corroborando estimativas que apontam para civilizações amazônicas tão complexas e populosas quanto centros mesoamericanos contemporâneos.

João Francisco Lobato
João Francisco de Oliveira Lobato é engenheiro civil (UFPA) e administrador de empresas (Mackenzie), MBA-E (FEA-USP), mestre em Sustentabilidade (FGV), doutorando em Sustentabilidade (Unifesp) e Especialista em Estratégia, Marketing, Gestão de Baixo Carbono e Comércio Exterior; Tecnologia de Elastômeros; Design Thinking, Formação em Impacto Social, BPM e Gestão Ágil. Tem experiência profissional como executivo, conselheiro e consultor junto ao setor privado nas áreas de: Estratégia, ESG - Sustentabilidade, Planejamento Empresarial, Governança e Ética, Inovação, P&D e Gestão de Conhecimento. Junto à área pública e sociedade civil: Inovação Social, Redes e Democracia, Empreendedorismo Social, Ecologia e Inclusão Produtiva. Foi executivo e C-level por 16 anos no grupo Coimbra Lobato, gestor do programa Cidadão do Presente (Governo SP), superintendente da Fundação Stickel e diretor no Instituto Jatobas. É membro de: Uma Concertação pela Amazonia, Observatório do Clima e Pacto pela Democracia, diretor de Sustentabilidade do Instituto Physis e VP do Instituto JUS. Atualmente, sócio-diretor da JFOL Capacitação e Treinamento, consultor sênior da FIA - Fundação Instituto de Administração e diretor de Sustentabilidade da QCP Consultoria e Projetos.

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