Publicado em: 30 de novembro de 2025
Percebo a importância em falar de sexualidade feminina quando, após uma coluna, várias pessoas vem falar comigo no privado. O fato é que somos atravessadas de várias formas quando o assunto é a nossa sexualidade, nosso corpo, e mais que isso, a possibilidade de autonomia e liberdade. Por que uma mulher livre sexualmente e que afirma gostar de sexo assusta? Já pararam para pensar?
Dentre as conversas, uma amiga trouxe sobre o uso de aplicativos no celular. Sendo algo novo para ela, seu interesse era encontrar homens para se divertir, pois, no momento, não pretende estabelecer um relacionamento estável e monogâmico.
Por isso, durante as conversas, quando os homens perguntam sobre o seu interesse e ela respondia “conversar e transar” ou “apenas me divertir”, os homens paralisavam. Sumiam. Ficavam dias sem responder. Ela percebeu o quanto é assustador para os homens que uma mulher assuma de forma assertiva o lugar de escolha, saindo da passividade e do estereótipo daquela que está sempre a procura de um grande amor.
Nas reflexões dessa amiga com outra amiga dela, chegaram a conclusão que “homens adoram objetificar, mas não aceitam ser objetificados”. Portanto, estamos falando de posições de poder. Não é o sexo, que os homens dizem tanto gostar e usam para se reafirmar por aí, mas a relação de domínio, de conquista e até de devastação.
Tenho assistido a série da Ângela Diniz. Quando vi o filme, fiquei muito incomodada pelo excesso de sexualização da atriz, fazendo o filme parecer um pornô soft. Na série, percebo uma preocupação um pouco mais evidente em abordar as repercussões e efeitos do patriarcado. Mas o que me chamou atenção foi pensar no fato de que somos um país que mais mata diariamente mulheres e muitos casos seguem na invisibilidade, por que então o caso de Ângela chamou atenção e mereceu um podcast, um filme e uma série?
Há algo óbvio que é preciso ser demarcado aqui, a classe social e cor da pele de Ângela, afinal outros corpos não chamariam tantos olhares e indignações.
Quantas mulheres negras foram estupradas e mortas e sequer saíram em jornais?
Contudo, há algo que se soma nesse caso e que gostaria de pontuar aqui, pois a própria série retrata que sua amiga, também branca e rica, foi morta pelo ex companheiro após pedir divórcio, sem tanta indignação coletiva ou espantos.
O fato de que Ângela era uma mulher dentro dos padrões estéticos, ou seja, uma mulher considerada bonita (uma mulher “perfeita” para o casamento da aristocracia) e que desafiava os padrões das mulheres recatadas. Ela ousava usar seu corpo e escolher seus pares. Uma mulher que deseja. Logo, um prato cheio para publicidade que alimentava a elite carioca e que escancarava sua vida pessoal (e sexual), levando a julgamentos morais e perseguições jurídicas gendrificadas. Sim, cheia de privilégio e de esbanjamentos, ainda assim sofria com as perseguições patriarcais, perdendo o direito a maternidade, por exemplo.
O feminicídio cometido por Raul Street causou revolta e, por isso, fez avançar a legislação ao se tornar um marco nos movimentos feministas, impulsionando a luta contra a violência doméstica e a tese da “legítima defesa da honra”, divulgando o slogan “quem ama não mata”. Por isso, a importância desse caso.
Novamente reitero que muitas mulheres negras e periféricas ou mulheres trans ou lésbicas jamais são alvo de tanta indignação por violências. E que é sim uma constatação a indignação seletiva, o que não diminui a dor de ter visto uma mulher sofrer por querer existir, tendo a vida ceifada.
Voltando ao bate-papo com minha amiga, outro fator constatado por ela foi em relação ao nosso controle em relação aos encontros com os homens. Se numa cidade grande, o medo é da violência, do desconhecido, em uma cidade pequena, é do falatório, da fofoca.
Somos mortas pela violência da língua e das armas. Tentam sempre nos matar um pouco, quando ousamos sair da rota.
Há poucos dias, li a notícia de uma estudante de mestrado que foi assassinada por um homem qualquer, numa trilha, quando ia à aula de natação. É sobre isso. Uma vida, com todos sonhos, projetos, lutas, relações, acabada por ter andado sozinha, sem olhares sob si.
O fato é que vivemos sempre sob controle do nosso caminhar, especialmente para o exercício da nossa sexualidade.
O modo de falar, de dançar, de se expressar, os hábitos, tudo milimetricamente calculado é utilizado quando pertinente por quem tem interesse. Quando não, nosso sexo é usado e violentado por aqueles que sequer tem a empatia de nos ver como um sujeito.
Portanto, volto a dizer: há um exercício que precisa acontecer conosco, nas nossas relações em grupo.
É preciso problematizar nossos próprios julgamentos e fiscalizações sobre outras mulheres; é preciso fortalecer nossas relações e nos unirmos pelo direito ao exercício do nosso próprio corpo, para que cada uma faça de si o que quiser, para que tenhamos amparo jurídico e segurança.
Nosso prazer não pode e não deve ser um instrumento do patriarcado. Que a gente possa brincar com nosso corpo, amar o nosso corpo, usar nosso corpo e colocar na rua ou em casa (com segurança). E que os que se assustam com isso, com mulheres desejantes, que se recolham. O problema não está em nós, o problema está no patriarcado, e no como os homens se beneficiam, se afetam e atuam com e a partir dele.


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