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Dedicado ao acadêmico Agildo Monteiro Cavalcante.

Dos cinquenta leitores, o narrador opinativo do romance Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, reconhece, como Machado de Assis do prefácio de Memórias Póstumas de Bras Cubas, que apenas cinco lerão a obra. Esta influência estilística do escritor carioca está na introdução do primeiro romance de Mário de Andrade, lançado em 1927 e substancialmente alterado à edição definitiva de 1944.

Analisando bem a sua obra em prosa e a sua poesia também prosaica, o narrador andradeano é tipicamente modernista, intimidado pelas críticas que ainda vai receber, sinalizando que terá mais inimigos do que leitores, frustrando-se a quarenta e cinco leitores críticos.

Ciente de que Modernismo é a escola da crítica, da polêmica e da recepção do efeito da nova arte, o narrador andradeano terá esses quarenta e cinco leitores sob a perspectiva esperada de todo modernista, a de se deparar com seus críticos e do círculo restrito de amigos que lerão o livro.

„Volto a afirmar que o meu livro tem 50 leitores. Comigo 51. Não é muito não. Cinquenta exemplares distribuí com dedicatórias gentilíssimas. Ora dentre cinquenta presenteados, não tem exagero algum supor que ao menso 5 hão de ler o livro. Cinco leitores. Tenho, salvo omissão, 45 inimigos. Esses lerão meu livro, juro. E a lotação do bonde se completa. Pois toquemos para avenida Higienópolis!“ (Mario de ANDRADE. Amar, Verbo Intransitivo, p. 57, 2006).

Narração de certa forma similar a de Machado de Assis, questionando seus leitores em Memórias Póstumas de Brás Cubas para depois tocar o coche rumo para Matacavalos, questão de estilística que se imita, acrescida da desconfiança total em uma humanidade impregnada de melancolia machadiana agora adicionada do senso crítico modernista dos futuros leitores do autor do Amar, Verbo Intransitivo.

A preocupação real é a que o autor terá um circulo de amigos para ler a sua obra, ou talvez, um ensaio dentro da narrativa sobre a Questão da Recepção, ponto aqui de destaque, assim, uma vez que o Modernismo, segundo Douwe Fokkema, levou a pensar um papel de grande relevo ao leitor, afinal o respeito pela individualidade do leitor tornou-se uma convenção modernista.

Mas, a preocupação do narrador intrometido do estilo Sterne-Machadiano reverbera em Amar, Intransitivo, desde a construção de suas personagens, na forma de narrar e na linguagem. A famosa digressão à la Machado de Assis procurando o seu leitor reaparece em Mario de Andrade.

A obra é para 51 leitores (mais o próprio Mario de Andrade), leitores cautelosamente enumerados pelo narrador. E aqui vou novamente ao ponto que interessa: o leitor é peça-chave na literatura moderna, e a possível explicação para tudo isso esteja na „famililaridade“ ou na „amizade“ cobrada pelo narrador do Tristram Shandy, no capítulo seis:

‒ Deve o senhor ter um pouco de paciência. Propus-me, como sabe, a escrever não apenas minha vida mas igualmente minhas opiniões: na esperança e expectativa de que vosso conhecimento do meu caráter, e de que espécie de mortal sou eu, de um lado, pudesse dar-vos, de outro, maior apetência; à medida que for o senhor avançando no que a mim respeita, o ligeiro conhecimento que ora desponta entre nós se converterá em familiaridade; e, a menos que falte um de nós, terminará em amizade. (Laurence STERNE. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, 1984, p. 53)

Opiniões podem valer mais que uma vida pouco interessante do homem moderno, e o mais importante: o romance tem nomenclaturas de uma gramática porque é em si o drama de um escritor paulistano na intimidade da língua, da arte, da cultura, da estética, da forma, da tradição e da moral.

Já que o drama do escritor modernista é impor uma nova fala diante da tradição, é – portanto – justamente a noção de gramática que tem que ser repensada antes de se renovar uma língua.

E quanto ao idioma, Amar, verbo intransitivo mostra que seu autor trabalhava um projeto de revisão da língua portuguesa no Brasil. Neste projeto detectamos um drama linguístico e uma forma literária na linha do impasse: o nacional vinha de fora: Sterne e Dom Quixote, assimilado e por que não aperfeiçoado por Machado de Assis.

Mario de Andrade compõe esse grupo de cinco leitores, um círculo fechado (e de novo dois pontos): trata-se de uma “gramática”, particular do Modernismo, em especial para o escritor paulistano recém-saído da Semana de Arte Moderna, seu primeiro romance-idílio, sempre revisado para entender a influência barroca de estilo franciscano de Minas Gerais, peças pequenas, igrejas menores, talhas diminuídas, como seus personagens: crianças em uma mansão de Higienópolis, uma culta alemã, a Fräulein, contratada como professora de música e idiomas e diminuída à tarefa de ensinar sexo seguro ao herdeiro, o adolescente e aluado Carlos Sousa Costa.

O romance comprova-se, assim, como um gênero de experiência similar à da poesia. A linguagem do romance força o autor paulistano a rever sempre a língua que escreve, seja ela qual for porque o escritor modernista é quase um poliglota, a língua passa a ser um personagem a rondar a lida criativa do escritor, daí que a prosa moderna ter se aproximado da poesia, daí ser um diálogo constante em todos os sentidos, na influência, na pontuação, na narração e aqui o diálogo com o leitor, nas pegadas de Sterne e de Machado de Assis (e estes, de Cervantes), ser um diálogo de franqueza, de familiaridade e de gentilezas.

“Volto a afirmar que meu livro tem 50 leitores. Comigo 51. Não é muito não. Cinquenta exemplares distribuí com dedicatórias gentilíssimas”. (Mario de ANDRADE. Amar, Verbo Intransitivo, p. 57, 2006).

Na sua essência, como já foi dito, o romance, na forma, é um exercício poético, não a poesia metrificada, ritmada na canção das rimas ou das assonâncias, mas naquele primeiro impulso poético que muitas vezes não encontra a forma adequada e sim na expressão. Aí, a prosa moderna revelou-se um lugar provisório e ao mesmo tempo ideal porque é lugar que reforça o experimento sem abdicar da tradição que ora serve à tradição ou ora serve à renovação, ou em todo caso o que ora serve à literatura.

E essa é a literatura do Modernismo. 

Benilton Cruz
Benilton Cruz é doutor em Teoria e História Literária, professor de alemão e do Curso de Letras-Português e Letras-Libras da UFRA, Campus Belém, autor dos livros: Olhar, verbo expressionista – O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade; Moços & Poetas – Quatro Poetas na Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino e Max Martins; Espólios para uma Poética – Lusitanias Modernistas em Mário de Andrade; pesquisador e perito forense, editor do blog Amazônia do Ben; editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Diretor da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará; e membro eleito da Academia Paraense de Letras.

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