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O tempo quase que flutuou e o burburinho entrou no mute quando Gilberto Gil entrou no camarote central do Theatro da Paz, seguido por uma comitiva feminina de ministras e primeiras-damas – a do Brasil e a sua. Sabia já há muito que, do meu lugar, seria sua quase vizinha, mas não esperava que a respiração fosse funcionar daquele jeito errôneo. Abracei com os olhos um Gil com um olhar cansado de Orixá vivo que não esmorece em sua arte e seus ideais.

Queria entrevistar Marina Silva. Queria perguntar-lhe como ela, logo ela, que aprendeu a ser seringueira como aprendeu a andar, que caminhou de braços dados com Chico Mendes, mulher negra amazônida, a senadora mais jovem da história brasileira, eleita aos 35 anos e que tornou-se o ícone maior da luta ambiental deste país que trouxe uma COP para a Amazônia mas que continua sua exploração colonial ao bel-prazer, o que ela sentia ao estar no Theatro da Paz, um ícone de uma Belle Époque que, de bela, para o povo, não teve nada; um símbolo de ostentação do poderio colonial que construiu obras espetaculosas às custas do suor e sangue dos nossos e que hoje, e naquele momento em especial, estreava com toda pompa uma ópera composta por um músico popular que, na época da construção do Theatro, jamais ocuparia tal posição.

Queria cruzar com os olhos de Margareth Menezes e puxar um “eu falei faraóóó!”. Pedir seu autógrafo. Queria agradecer Anielle Franco por ser “púcu escruta”, como diria o cabôco, e dos altos dos seus 3 metros e 20 centímetros de altura nunca se calar diante dos misóginos, machistas, assediadores e preconceituosos que tentam intimidá-la. Queria dar um alô para a Janja que também não permite que a diminuam e que usa de um papel antes decorativo para lutar pelo protagonismo feminino. Queria também pegar umas dicas com a Flora Gil e aprender a produzir a minha vida magicamente como tudo o que ela faz.

Não faltou fuzuê ali pela Primeira Ordem do TP. Era o Luciano Huck distribuindo beijinhos para um lado; a presidenta do Banco do Brasil Taciana Medeiros e o presidente do BNDES Aloizio Mercadante, bem na deles, assim como o fantástico professor Gilmar Pereira da Silva, primeiro reitor da UFPA a se autodeclarar preto; o ex-vice-presidente estadunidense e ativista ambiental Al Gore, que mesmo acostumado aos maiores holofotes mundiais quase engasgou quando foi citado pela Úrsula Vidal, secretária de cultura do Pará; e vários Roberts, que, como eu, aproveitavam para documentar o momento.

O Theatro calou-se para ver a estreia mundial da encenação de I-Juca Pirama – Aquele que deve morrer. Gonçalves Dias, no sudeste reconhecido por “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o Sabiá / As aves, que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá”, é aqui no nosso país o autor do nosso hino “Sou Bravo, sou Forte / Sou filho do Norte”. Amazônida do Maranhão, pardo, filho de um português que o arrancou dos braços de sua mãe cabocla de origem negra e indígena, bradou o orgulho nativo de nosso sangue originário, retratando os indígenas como os heróis nacionais que sempre foram. 

Os figurinos criados por Bu’ú Kennedy, xamã Tukano, em colaboração com a figurinista Irma Ferreira, produzidos por artesãos e coletivos indígenas da Amazônia com fibras e pigmentos naturais através de técnicas tradicionais, faziam dançar as vozes do Núcleo de Ópera da Bahia, do Coro Carlos Gomes e de artistas do povo Huni Kuin, do Acre, que entoavam as letras de Paulo Coelho, musicadas por Aldo Brizzi, que do fosso comandava a OSTP, e de Gil.

Gil escutava o sussurar de Gonçalves Dias enquanto o palco se dobrava em canto e dança. E contou-nos, ao final, que ele estava alí. Nós sentimos. Nós abraçamos Gil, com os olhos. Um Gil que carrega no olhar uma força muito maior do que qualquer um de nós pode explicar. E que está aqui para que ninguém seja o último Tupi.

Videos: Gabriella Florenzano

Foto de destaque: Alexandre Costa / Ag. Pará

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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