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No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro desde 1940, ou seja, há mais de 80 anos. Contudo, tal como Simone de Beauvoir pautou sobre os direitos das mulheres, precisamos sempre estar atentas, afinal nossos direitos não são totalmente consolidados, estando em permanente ameaça diante de qualquer crise econômica ou política.

O fato é que, para nós que pertencemos ao grupo de minorias em direitos, estamos assombrosamente submetidas a um congresso composto por uma maioria de políticos homens, brancos e conservadores, alinhados a interesses econômicos próprios, organizados para exploração. Logo, enquanto eles celebram riqueza e impunidade, junto a empresários religiosos e da pecuária e do agronegócio, nós vivemos uma crise política que recai diretamente sobre nossos corpos.

Recentemente, 317 deputados (82,3% homens) aprovaram o PDL 3/2025, proposto pela maioria de políticos do PL, que derruba uma resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) que garantia que o aborto vivenciado por meninas (crianças e adolescentes até 14 anos) pudesse ser realizado sem boletim de ocorrência, sem decisão judicial, sem consentimento dos pais e sem limite gestacional.  A decisão é preocupante, pois, por se tratar de um decreto legislativo, não poderá ser vetado pelo presidente Lula, sendo nossa alternativa a votação do Senado.

Os argumentos dos deputados são ardilosos, pois apelam para moralidade religiosa que assola muitos/as brasileiros/as, ao ponto de manterem-se ignorantes frente a qualquer reflexão crítica e o reconhecimento das realidades e pautas sobre saúde pública no território nacional.

Assim, utilizam-se de palavras-chave, como “ideologia” e apelam para falácia de um “sistema esquerdista” buscar promover uma “fábrica de aborto” para mobilizar a manada de cidadãos/ãs que não tem bagagem e referencial técnico-ético-científico à seu favor.  E é triste de ver, como nos narrou a deputada Samia Bomfim (Psol), que alguns deputados nem sabiam ao certo do que se tratava a votação, utilizando palanque para discursos sensacionalistas e sem qualquer responsabilidade.

A realidade em dados é que 184 mil crianças e adolescentes são estupradas por ano no Brasil.  Segundo Gov, por hora nascem 44 bebês de mães adolescentes a cada ano, e, segundo a Agência Brasil, 11.607 partos são consequência de violência sexual contra meninas menores de 14 anos.  Além disso, apesar de garantido o direito da interrupção, a maior parte das meninas são levadas a maternidade compulsória, por diversos motivos, dentre eles, a falta de amparo institucional e serviços próximos, e as estratégias do sistema, inclusive de médicos, para postergar seu direito, dificultando a realização de sua decisão e revitimizando as meninas. Em 2023, por exemplo, apenas 154 meninas conseguiram acessar seu direito, em todo o país.

O censo de 2025 afirma que o Brasil tem 34 mil crianças e adolescentes de até 14 anos vivendo em uniões conjugais. O Pará consta com 2579 pessoas nesta condição, a maioria parda e pobre. A quem esse quadro favorece?         

Meninas mães tem menos probabilidade de estudar, de questionar e de ascender profissionalmente e de classe social, de disputar lugares de poder e de distribuição de renda. Meninas casadas são usadas para benefícios de homens adultos, ocupando espaço de servidão, assumindo a economia do cuidado, fato que faz girar o sistema capitalista. Meninas-mães perdem os direitos básicos da infância e tem poucas ou precárias condições de educar outras crianças.

A deputada Samia chamou atenção para a assunção política dos homens deputados no Congresso, pois os mesmos que votaram para diminuição de direito das meninas, relutaram em votar o direito a licença paternidade, aprovando apenas vinte dias, fato que demonstra como pouco se importam com direitos das crianças e com a responsabilização de homens. A questão da votação está na proteção dos homens abusadores, afinal meninas precisarão do consentimento e aprovação dos pais, mas como pensar nessa obrigatoriedade em um país onde a maior parte dos abusadores de crianças e adolescentes são familiares próximos (pais, irmãos, padrastos, avôs, tios) e as mulheres, por vezes, não tem espaço para proteger suas filhas?

Ficam também os questionamentos: Quantas “mães solos” estão nessa condição por conta da violência sexual? E qual a relação disso com a precariedade de reflexões e políticas sobre paternidade?  O que o Estado ignora e finge não existir?

Se para nós, mulheres adultas, já é desorganizador viver uma violência sexual e sabemos das dificuldades de apoio, de recursos e de validação de nossos sofrimentos, geralmente acercados de julgamentos, vocês imagem esse cenário para meninas menores de 14 anos?

O pacto entre homens não é uma brotheragem apenas nos grupos de whatssapp ou mesa de bares, ele faz parte de um projeto político, muito bem articulado, governado por homens nos congressos. Agora, enquanto sociedade civil organizada, precisamos defender o básico, lutar por políticas públicas de educação sexual e feminista nas escolas, nas (e para as) famílias, assim com promover ações de responsabilizações que não pactuem com as impunidades. E isso passa por nós: por equipes da área da saúde, desde o postinho, pelos setores de segurança, da educação, na vigilância e proteção das crianças na vizinhança e nos nossos lares, e especialmente nas nossas escolhas por representantes nas urnas.  

 Finalizo reiterando o óbvio: Criança não é mãe, estuprador não é pai, e está mais do que na hora de criarmos um sistema onde os machos não possam mais legislar sobre nossos corpos. Não podemos ser peças-objetos dessa trama destruidora patriarcal.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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