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Na segunda noite da 43ª edição do Festival do Abacaxi, em Barcarena, o público vibrava a cada palavra ou imagem formada pelos drones durante o show de Alok. Conhecido por utilizar tecnologia durante suas apresentações, assim como seu esforço na atuação em causas socioambientais, a equipe do dj brasileiro reproduziu nos céus de Barcarena o tema do festival escolhido para este ano: “Vem pra festa da floresta”.

Imagem retirada de vídeo do Instagram oficial da Prefeitura de Barcarena (2025)

Após quatro dias de evento, o festival encerrou no domingo, 28 de setembro. Entre os presentes da última noite estava o governador Helder Barbalho, que havia retornado dias antes da agenda nos Estados Unidos, onde participou da Semana do Clima de Nova York, em preparação para a COP 30, a conferência do clima que será realizada em novembro, na capital paraense. Em suas redes sociais, Helder publicou vídeo mostrando imagens dos shows e elogiou a estrutura, mencionando o mesmo tom de exaltação da sustentabilidade. “Olha a estrutura maravilhosa (…) Aqui no Festival do Abacaxi, no Ecoparque, vem para a floresta”, disse.

Tradicional no município, chegando a mais de 40 edições, o Festival do Abacaxi desde 2022 é realizado no novo espaço: o ECOparque de Barcarena-Cafezal. O nome, com o prefixo “eco”, busca enaltecer o meio ambiente, a sustentabilidade e outros conceitos presentes nos discursos oficiais e corporativos.

Com a proximidade da COP 30, o tema deste ano do Festival do Abacaxi puxou exatamente o tema da “festa na floresta”. No entanto, o espaço que abrigou os shows de Alok, Belo, Jota Quest e Pedro Sampaio, entre outros, era uma área verde de vegetação. Até 2021.

Sequência de imagens de satélite na área do bairro Cafezal, em Barcarena, entre 2022 e 2025. Fonte: Copernicus

As imagens de satélite do sistema Copernicus e do Google Earth demonstram que a partir de 2022, foi iniciado o processo de desmatamento da área para dar lugar à arena multiuso. No total, o espaço ocupa 20,83 hectares, o equivalente a quase 30 campos de futebol. Além da arena, foi aberta uma estrada para acessar o espaço, cortando o bairro conhecido como Cafezal. A arena é toda asfaltada, com estrutura de palco, camarotes e estacionamento para sete mil veículos.

A reportagem solicitou à Prefeitura de Barcarena esclarecimentos sobre a obra e a ação de supressão na área. Em nota, a gestão municipal afirma que cumpriu “todas as etapas referentes ao projeto do Ecoparque do Cafezal foram devidamente conduzidas dentro dos parâmetros legais e ambientais vigentes”. Porém, uma consulta ao sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), não foi identificado registro para a área.

O comunicado oficial solicitado pela reportagem afirma também que o empreendimento “conta com todos os estudos técnicos e licenciamentos necessários, conforme exigido pelos órgãos competentes”. E que “as intervenções realizadas foram precedidas de avaliações ambientais detalhadas, de modo que não houve supressão irregular de vegetação nativa, tampouco prejuízos a corpos hídricos ou à fauna local”. O texto menciona ainda que “a área em questão correspondia a uma vegetação de mata secundária, e não a uma floresta nativa” e que “todas as ações desenvolvidas respeitaram as diretrizes legais e ambientais aplicáveis a esse tipo de ecossistema”.

A nota aponta que “todas as compensações ambientais previstas em lei foram integralmente executadas, contemplando ações de reflorestamento com espécies nativas, programas de educação ambiental e iniciativas voltadas ao fortalecimento das comunidades do entorno”.

A reportagem solicitou o envio dos estudos, laudos e as ações de compensação ambiental e social mencionadas na nota. Porém, mesmo após dez dias do pedido, não foram enviados documentos. A reportagem também procurou a Semas do Governo do Pará, que através da assessoria de comunicação, informou apenas que a licença exigida é municipal.

Em 2024, prefeitura divulgou ação para “compensar emissões de carbono do Festival do Abacaxi”, com plantio de 18 mudas da espécie castanheira. Foto: Ascom Prefeitura de Barcarena.

A reportagem também questionou a prefeitura sobre a escolha do nome “Ecoparque” para um empreendimento construído onde um dia foi uma área de mata, ainda que de vegetação secundária. A nota da prefeitura afirma que “o Ecoparque do Cafezal foi concebido com foco na valorização ambiental, social e educativa, funcionando como um espaço de convivência sustentável, incentivo à preservação e promoção de atividades de lazer e educação ambiental. Segundo a prefeitura, “o nome Ecoparque reflete exatamente esse propósito: aliar infraestrutura pública à conservação ambiental e à qualidade de vida da população”, diz o texto oficial.

No “Ecoparque”, sai a mata e entra o asfalto e concreto

O caso chama a atenção pela falta de transparência das licenças, da mudança da paisagem e do nome escolhido, além de estar situado num município já bastante pressionado pela atividade industrial. Para o engenheiro florestal Wendell Andrade,mestre em desenvolvimento local pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em políticas climáticas na iniciativa Política por Inteiro, no Instituto Talanoa, o empreendimento apresenta uma série de pontos de atenção.

Segundo ele, na Amazônia geralmente ganha mais destaque grandes áreas queimadas ou abertas, como se áreas menores não tivessem o mesmo impacto. “Mas isso não se sustenta do ponto de vista científico. Grande parte dos serviços ecossistêmicos que são prestados gratuitamente pela natureza para as populações humanas, eles se dão numa escala local, no microclima local, nas diferenças que são sentidas diariamente pela população, como a sensação térmica com uma eventual redução de umidade”, explica.

O engenheiro reforça que o fator tempo geralmente não é considerado nos discursos oficiais e na argumentação de defesa de projetos que desmatam para promover compensação com plantio de outras espécies. “Costumam trazer um entendimento que seria aceitável e compreensível a retirada de uma árvore desde que ela seja compensada, com o plantio de outras. Acontece que a gente tem uma variável fundamental chamada tempo.O benefício que uma árvore hoje madura presta hoje vai levar 20, 30 anos para as mudas recém plantadas façam o mesmo. Não é seis por meia dúzia”, resume.

Outro ponto que Wendell chama a atenção é que um empreendimento que incluiu a abertura de uma nova estrada, como é o caso do Ecoparque, pode induzir ainda mais pressão na região. “Sempre que você abre estradas, é gerado um efeito perpendicular, com novas vias e ocupações muitas vezes irregulares”, afirma.

Sobre a área desmatada ter sido de vegetação secundária e não nativa, Andrade esclarece que o termo pode levar à um falso entendimento de que se trata de um “problema menor”. Para ele, essa expressão inclusive é bastante utilizada para justificar ações que prejudicam o meio ambiente e as comunidades próximas.

“Essa fala é comum e enganosa do ponto de vista ecológico. As florestas secundárias, muitas delas, são bastante antigas e estão em estágio de clímax, como a gente chama na engenharia florestal. Ou seja, elas já chegaram a um nível de desenvolvimento, com o máximo da sua biodiversidade, das suas funções hidrológicas, de captação de água, das funções de solo e, portanto, a retirada dessas florestas, ainda que secundárias, não faz com que ela esse processo seja menos prejudicial do que a retirada de florestas primárias”, complementa.

Wendell reforça a preocupação com esse entendimento a nível regional. “Se a gente considerasse que tudo que é secundário hoje na Amazônia não tem valor ecológico, a gente pode considerar que acabou. Os fragmentos de floresta nativa são cada vez mais raros. Então, se a gente fosse considerar só as florestas nativas devem ser alvo de conservação, a gente não teria a Amazônia que a gente tem hoje. Se a gente embarcar nisso, a degradação e desmatamento amazônico vão estourar”, alerta o engenheiro.

Termo “eco” reforça uso mercadológico do “marketing da floresta”, ressalta pesquisador

Autor do livro “Marca Amazônia: o marketing da floresta”, o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e publicitário Otacílio Amaral destaca que o exemplo do “Ecoparque” de Barcarena é mais um numa lógica de incorporação da floresta como discurso narrativo. “Acontece em Alter do Chão em Santarém, no Combu em Belém e em Parintins, no Amazonas. Você tem o lugar da cultura e aquilo é transformado numa lógica de mercado em vários aspectos e apropriações. Mas, nesse caso, você cria um lugar e usa o termo, que é algo mais escancarado e específico”, afirma.

Segundo ele, a abertura do espaço revela a lógica do mercado que se apropria do termo que carrega os símbolos da sustentabilidade, do verde, da natureza, que tem valor. “Então, é um esvaziamento. A intervenção se transforma em posse de um território que passa a ser próprio para consumo e não mais um lugar para viver, para conviver. Nesse caso do Ecoparque, é ainda mais evidente. É de derrubar para fazer. Então, é contraditório com o próprio nome de ecoparque. Em vez da proteção ecológica, derruba e dá o nome que fala em sustentabilidade. E a publicidade vai e usa o melhor estereótipo que serve à essa lógica de mercado”, avalia Amaral.

O pesquisador deve inclusive lançar ainda este ano um outro livro que aborda o tema da Marca Amazônia. “Após o marketing das florestas, esse outro trabalha o movimento do marketing das culturas originárias e tradicionais. Muita coisa da Amazônia foi sendo destacada pela cultura, não exatamente por conta somente da floresta, mas da cultura tradicional, originária, como ela já convive com a floresta e seus usos e tem uma lógica de mercado que busca se apropriar. É algo nítido e que você tem nesses conceitos um peso muito forte, muito valor e usam disso”, aponta Otacílio Amaral.

Daniel Nardin
Daniel Nardin é jornalista e lidera o Amazônia Vox, uma iniciativa de jornalismo baseada em Belém (PA) e que produz conteúdo priorizando vozes locais e respostas para os desafios da região.

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