Publicado em: 26 de outubro de 2025
Nesta semana, chegou às minhas mãos o livro “Sociedade do Cansaço” de HAN, Byung-Chul de 2015 da editora Vozes, Petrópolis. O texto provoca uma reflexão de nossas atitudes e condutas diante dos desafios que é viver neste contexto em que estamos. Para se ter uma ideia da gravidade do tema, basta lembrar de nossos diálogos cotidianos principalmente quando nos deparamos com amigos e iniciamos uma conversa com a pergunta: como você está? A resposta é automática – muito cansado!
É justamente para problematizar esse cotidiano que vivemos, impregnado de pessoas com ansiedade, depressão, sofrimentos psíquicos como síndrome de burnout, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e depressão.
Viver de costas para a vida é o destino silencioso de uma era que confunde movimento com sentido, produtividade com valor, e aceleração com liberdade. No mundo contemporâneo, o sujeito deixou de ser explorado por um outro como ocorria na sociedade disciplinar descrita por Michel Foucault para explorar a si mesmo em A Sociedade do Cansaço (2015). Esse novo modo de dominação é mais sutil, pois traveste-se de autonomia e motivação pessoal. O indivíduo acredita estar livre, quando na verdade é prisioneiro de sua própria ânsia de performar.
Han denuncia que vivemos na era do “animal laborans”, o homem que só reconhece o próprio valor quando está produzindo. A lógica neoliberal, ao substituir o dever pela autossuperação, transforma o sujeito em um “projeto em andamento”, permanentemente inacabado e insatisfeito. Ele precisa ser eficiente, criativo, competitivo e, sobretudo, positivo. Essa positividade tóxica é o combustível de uma engrenagem que nunca para.
A sociedade do desempenho exige que o ser humano esteja sempre “ativo”, “online”, “empreendendo”, “melhorando”. O descanso é visto como falha moral; o ócio, como improdutividade. O sujeito pós-moderno é um “empresário de si”, expressão que Han retoma para mostrar como o eu se tornou uma empresa emocional e corporal, exigindo resultados em todas as esferas: trabalho, estética, afetividade, espiritualidade.
Esse modelo de existência gera um novo tipo de violência, a violência da positividade. Ela não vem de fora, mas de dentro, é o próprio sujeito que se cobra, que se vigia, que se autopenaliza por não ser “suficiente”. O outro não precisa mais oprimir; o próprio sujeito tornou-se o seu algoz. Viver de costas para a vida, portanto, é viver voltado para o espelho das exigências internas, esquecendo-se da paisagem real, dos encontros, das pausas, dos silêncios que nos humanizam.
Em nome da eficiência, perdemos o direito de sermos lentos. Tudo o que não pode ser monetizado, acelerado ou medido em métricas de desempenho é descartado. Assim, o amor cede lugar ao networking; a contemplação, ao “scroll infinito”; a presença, à hiperconectividade.
O preço dessa aceleração é devastador. As doenças da alma na modernidade, depressão, ansiedade, síndrome do pânico, burnout não são sinais de fraqueza, mas sintomas de uma estrutura social adoecida. Han afirma que “a sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados” porque a exigência de ser sempre mais transforma o sujeito em seu próprio explorador. Ele se exaure tentando atender a um ideal inalcançável de plenitude. Nessa corrida sem linha de chegada, o ser humano perde o sentido da existência. O trabalho, que poderia ser expressão de criação e partilha, torna-se uma prisão sem grades. O tempo, que deveria ser vivido, é cronometrado. A vida, que deveria pulsar em liberdade, é reduzida a tarefas. Viver de costas para a vida é viver de frente para o relógio.
Há, contudo, uma saída e ela começa com o resgate do “não fazer”, do “intervalo”. Han, em “O Aroma do Tempo” (2016), defende a necessidade de uma nova “arte da demora”, uma espiritualidade da pausa. Retomar o tempo interior é um ato de resistência contra a tirania da aceleração. É preciso, como diria Nietzsche, “aprender a dançar sobre o abismo”, encontrar alegria mesmo fora da produtividade.
A filosofia, nesse contexto, surge como convite à desaceleração. Pensar é, por natureza, um ato lento. Recuperar o hábito de refletir, de observar o mundo sem a urgência da utilidade, é um gesto político e existencial.
Viver de costas para a vida é viver anestesiado, reagindo, e não sentindo; conectado, e não presente. A hiperatividade social gera um vazio emocional que nada preenche, porque o sujeito perdeu a capacidade de estar consigo mesmo. Carl Jung advertia que “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”. A consciência interior é o único antídoto contra o automatismo coletivo.
Reencontrar a paz e o bem-estar não é, portanto, um luxo burguês, mas uma necessidade ética. Desacelerar é um ato de coragem num mundo que idolatra a pressa. É negar a lógica que transforma pessoas em algoritmos, emoções em dados e corpos em máquinas. É escolher viver com a vida, e não apenas sobreviver a ela. A saúde física, mental e espiritual não floresce na exaustão. Como lembra Han, “a vida que se reduz ao trabalho destrói-se a si mesma”. O verdadeiro equilíbrio está na harmonia entre o agir e o contemplar, entre o fazer e o ser. Quando o sujeito reencontra essa medida, ele volta a pertencer ao mundo em vez de apenas consumi-lo.
Viver de costas para a vida é o maior sintoma de nossa era e talvez o mais trágico. A revolução que nos resta não é tecnológica nem econômica, mas interior. É preciso reaprender o gesto mais humano e mais esquecido: parar. Parar para sentir, para ouvir, para respirar, para existir. Só assim poderemos, enfim, voltar o rosto para a vida e reconhecer nela aquilo que sempre buscamos fora: o simples, o lento, o vivo.



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