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Uma vez escutei certa história sobre como as palavras, às vezes, funcionam como uma bomba atômica devastando tudo sem deixar rastro. Isso é verdade. Como também é verdade que em alguns casos, sem de fato havermos pronunciado sequer uma sílaba, dizemos coisas muito complexas ao outro.
O que faz com que sejamos de determinada maneira ou únicos, apesar de frequentemente partilharmos as mesmas situações, é a forma como cada um de nós percebe e internaliza as experiências. E assim, a partir de tais eventos, vamos nos constituindo enquanto sujeitos.   
Na minha clínica não atendo crianças, porém, como se desenvolvem, nunca me passou despercebido. É inegável a importância do meio ambiente para a formação delas. Muitos pais/mães acreditam que as crianças são como esponjinhas e, portanto, quanto mais estimuladas, maior sua capacidade de absorver conhecimentos e “se darem bem” na vida adulta. Então, enchem os filhos de brinquedos educativos, cada um com uma finalidade e, dessa forma, o lúdico deixa de ser divertimento, prazer, para transformar-se em objetivo. O brincar puro e simples desaparece e a criança passa a experimentar o peso da cobrança ainda na primeira infância. Como será que essas crianças estão reagindo aos estímulos que lhes são apresentados?
Morar nos Estados Unidos, por um período da vida, serviu-me como termômetro ou observatório de como certas características são construídas em determinadas sociedades. Eu, inúmeras vezes, ficava olhando o jeito de ser dos estadunidenses – digo estadunidense porque americanos são todos os que nascem nas Américas – e instantaneamente, sem que me desse conta, lá estava eu fazendo comparações com os latino-americanos.
Vi incontáveis vezes pais almoçando ou jantando enquanto a criança caminhava ou brincava ao redor da mesa, até que em um determinado momento ela decidia sentar-se em uma cadeira. Os pais fingiam não perceber enquanto tentava subir. Caía, levantava-se. Tentava subir novamente, caía, levantava-se. Tentava subir novamente, caía, levantava-se e, lá pelas tantas, após muitas tentativas, ela conseguia. Detalhe: quando caía ensaiava um chorinho, mas como os adultos não “davam bola”, ela calava.
Eu olhava e pensava na mãe latina. Aqui, quando uma criança vai na direção de numa cadeira, antes que ela sequer tente, um adulto se adianta e senta-a. Também tem os mais apavorados que gritam: “cuidado, segurem essa criança senão ela vai cair!”. Isso que parece cuidado pode ser entendido de outra forma pela criança.
A criança que caiu várias vezes até conseguir sentar-se sozinha vai internalizar, obviamente, de forma inconsciente: “eu posso!”, “posso cair mil vezes, mas posso conseguir”. A criança que a mãe corre e senta-a na cadeira, sem se dar conta, pode estar dizendo: “tu não consegues fazer sozinho!”. Não estou afirmando que os estadunidenses educam melhor. Absolutamente! Estou falando de atitudes que podem ser “ouvidas” ou internalizadas com outros significados.
Quando vejo a cena em que uma criança chora logo na primeira tentativa de algo que ela queria e não conseguiu, pergunto-me se ela internalizou o “eu não consigo”, ou se simplesmente percebeu que não precisa fazer esforço, basta gritar para alguém vir satisfazer as suas vontades. Muitos pais não percebem que satisfazendo as vontades dos filhos todas as vezes que gritam estão na verdade tirando deles a possibilidade de criarem meios psíquicos de lidar com a frustração e o tédio, além de estarem criando indivíduos pouco empáticos, egocêntricos, manipuladores e sem limites.
Discursos não faltam e os cardápios são variados para os candidatos a pais. O filho nem saiu das fraldas e os pais já estão pensando, por exemplo, em matricular na escola internacional para que seu rebento aprenda vários idiomas. O grande problema de gerar filhos é que os pais os criam como se fossem extensão de si mesmos, como produtos. Então essa criança precisa desenvolver inúmeras habilidades para que possa ser exibida e assim satisfazer seu narcisismo.
Não existe receita de bolo, nem mapa da mina que ensine a ser pai/mãe. A mãe e o pai nascem quando o filho nasce e, a partir daí, é pura aventura. Entretanto, precisamos refletir sobre a importância de olharmos esse ser separado de nós – não como nossa extensão – de maneira que possamos orientar sem destruir, educar sem tirar-lhe a capacidade de criar e fantasiar; e estimular não de acordo com as nossas vontades, mas a partir de suas habilidades.

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