Publicado em: 4 de outubro de 2025
Vivemos um tempo em que ler já não significa compreender. Em meio à enxurrada de informações que se multiplicam a cada segundo, o ato de ler tornou-se um exercício superficial — quase um gesto automático. O leitor contemporâneo desliza o dedo sobre a tela, capta fragmentos, coleciona manchetes, consome emoções rápidas e juízos prontos. A leitura deixou de ser diálogo e passou a ser consumo. O resultado é uma geração que lê muito, mas entende pouco — uma multidão de analfabetos na era digital, incapazes de interpretar o mundo que os rodeia.
A velocidade da informação tem um preço alto: a atrofia da reflexão. Paulo Freire já alertava que “ler não é caminhar sobre as palavras, mas penetrar nelas”. Hoje, entretanto, o leitor raramente penetra em algo. Ele é arrastado pela correnteza de conteúdos instantâneos, moldados para prender sua atenção por segundos. As redes sociais transformaram o pensamento em mercadoria e o algoritmo em editor-chefe do cotidiano. O que importa não é a verdade, mas o engajamento. O que vale não é o conteúdo, mas o clique.
O império do algoritmo se estabeleceu, essa entidade invisível que dita o que devemos ver, pensar e sentir. Ele conhece nossos medos, nossas crenças, nossos desejos — e nos serve narrativas sob medida. É o retorno à caverna de Platão em versão digital: sombras projetadas na tela substituem o pensamento, e a ilusão de saber conforta mais do que o confronto com a dúvida. Guy Debord, (1931 – 1994) em “A Sociedade do Espetáculo”, já denunciava esse processo de alienação: “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” Hoje, tudo o que era reflexão tornou-se postagem.
A superficialidade é o novo vício coletivo. A informação fácil embriaga, pois exige pouco esforço. Mas como lembra Umberto Eco, “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”, não no sentido ofensivo, mas como denúncia da banalização da opinião sem reflexão. O excesso de vozes sem análise gera ruído, não debate. Confundem-se opinião com conhecimento, achismo com argumento, emoção com fato. A crítica desaparece e o pensamento se dissolve em curtidas.
A consequência mais grave é o esvaziamento da autonomia intelectual. Um povo que não lê criticamente torna-se presa fácil da manipulação. A desinformação prospera porque não encontra resistência racional. O leitor que não questiona reproduz, o cidadão que não interpreta obedece. Pierre Bourdieu chamava isso de violência simbólica: uma dominação invisível, exercida não pela força, mas pelo controle do sentido. Hoje, essa violência é digital e cotidiana — travestida de entretenimento.
O sistema educacional também falha por não preparar mentes para a leitura crítica. Ensina-se a decodificar palavras, não a questioná-las. O texto é tratado como tarefa, não como instrumento de emancipação. Esquecemos que, como dizia Roland Barthes, “ler é fazer amor com o texto”. Exige entrega, tempo, desconstrução. Sem isso, o estudante — e o cidadão — perde a capacidade de ver além da superfície, de duvidar, de se indignar.
As redes sociais, por sua vez, transformaram cada usuário em uma microempresa de si mesmo. A lógica do capital retalhou o pensamento. Posta-se para vender a imagem, não para compartilhar ideias. Os algoritmos recompensam o que é raso e punem o que é complexo. A reflexão virou um produto de baixo engajamento. A criticidade, um erro estratégico. O leitor contemporâneo foi treinado para deslizar o dedo, não para aprofundar; para reagir, não para compreender.
É urgente recuperar o sentido da leitura . Ler criticamente é subverter o algoritmo. É retomar o tempo do pensamento em meio à pressa da distração. É devolver à palavra o poder de libertar. Freire lembrava que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Precisamos reaprender a ler o mundo — com seus conflitos, suas dores e suas manipulações — antes de aceitar qualquer narrativa pronta.
A crise da interpretação é também a crise da humanidade. Quando deixamos de compreender o outro, o texto, o contexto, deixamos de compreender a nós mesmos. A leitura crítica é o último reduto da liberdade em uma era de controle sutil. Ler é resistir. E resistir, hoje, é o maior gesto de humanidade que ainda nos resta.
Comentários