Publicado em: 18 de setembro de 2025
Um conjunto crescente de pesquisas em primatas, baleias e aves está desafiando uma das fronteiras mais antigas da ciência: a exclusividade da linguagem humana. Estudos recentes sugerem que a vocalização de espécies como bonobos, chimpanzés e baleias-cachalote pode apresentar complexidade comparável a estruturas linguísticas humanas. Agora, cientistas recorrem à inteligência artificial (IA) para acelerar a interpretação desses sons e, até mesmo, testar formas de diálogo entre humanos e animais.
Durante seis meses de observação na República Democrática do Congo, a primatóloga Mélissa Berthet, da Universidade de Rennes (França), documentou bonobos (Pan paniscus) combinando chamadas simples em frases mais complexas. Em uma das sequências, o grunhido “olhe para mim” era seguido de um grito que significava “vamos fazer isso”, resultando em uma mensagem coletiva de cooperação.
Esse fenômeno, conhecido como composicionalidade, já havia sido identificado em aves como o chapim-japonês (Parus minor) em 2016 e, mais recentemente, em chimpanzés (Pan troglodytes) diante de ameaças simuladas (Girard-Buttoz et al., 2023). A pesquisa sugere que a combinação de sons com significados novos, antes considerada exclusiva da linguagem humana, também está presente em outros animais.
No Caribe, cientistas do Project CETI (Cetacean Translation Initiative) vêm monitorando baleias-cachalote (Physeter macrocephalus) com sensores e drones. As gravações revelaram padrões complexos de cliques (chamados codas) que parecem formar uma espécie de alfabeto fonético.
O linguista Gašper Beguš, da CETI, usa modelos generativos de IA para reproduzir sequências de sons similares aos das baleias. Ele identificou variações nos codas análogas a vogais e ditongos humanos, abrindo caminho para uma tradução sistemática da “fala das baleias” (Beguš et al., 2024).
Todos estes estudos, segundo artigo publicado na Nature, são base para ferramentas de IA que estão tornando possível analisar grandes volumes de dados bioacústicos em tempo recorde. O modelo NatureLM-audio, por exemplo, responde a comandos como “quantas aves estão cantando?” ou “quais espécies estão presentes neste áudio”, processando milhares de horas de sons da natureza.
Outros avanços incluem o FinchGPT, desenvolvido por Kentaro Abe na Universidade de Tohoku (Japão), que procura indícios de gramática em canários-bengalins, e o DolphinGemma, criado em parceria entre o Google DeepMind, Georgia Tech e o Wild Dolphin Project, treinado para reproduzir padrões de golfinhos-pintados-do-Atlântico.
Essas empreitadas se somam ao Coller Dolittle Challenge, que oferece até US$ 10 milhões para projetos que desenvolvam comunicação bidirecional entre humanos e animais usando IA.
Apesar do entusiasmo, ainda não foram identificadas em animais três características fundamentais da linguagem humana listadas pelo linguista Charles Hockett: deslocamento (falar sobre o passado ou o futuro), produtividade (criar mensagens inéditas) e dualidade (sons sem sentido formando unidades com significado).
A recursividade é apontada como uma característica possivelmente exclusiva da linguagem humana. Trata-se da capacidade de encaixar frases ou sentenças dentro de outras, criando níveis adicionais de significado. Pesquisas conduzidas por Diana Liao, especialista em comunicação vocal e cognição na Universidade de Tübingen (Alemanha), treinaram corvos (Corvus corone) para selecionar, em telas sensíveis ao toque, parênteses abertos e fechados na sequência correta. O experimento revelou que essas aves são mentalmente capazes de lidar com estruturas recursivas, apresentando desempenho superior ao de macacos-de-cauda-curta e comparável ao de crianças humanas em fase inicial de desenvolvimento. Ainda assim, não há evidências de que os corvos utilizem essa habilidade em sua comunicação cotidiana.
Outro ponto em aberto é se os animais possuem regras gramaticais que organizem sua vocalização. Embora primatas sejam capazes de combinar chamados diferentes para gerar significados novos, a variedade de mensagens que conseguem produzir está “muito distante do que os humanos conseguem fazer”, observa o biólogo Cédric Girard-Buttoz.
Ele acrescenta que, embora seja tentador comparar comunicação animal e linguagem humana, os sistemas podem ser essencialmente distintos. O pesquisador afirma que é possível existir um sistema muito complexo, sem relação com a linguagem humana, mas que ainda assim permitiria comunicar uma grande quantidade de informações, de outra forma e por métodos diferentes.
Por essa razão, muitos pesquisadores evitam aplicar o termo “linguagem” a espécies não humanas. “A linguagem é um sistema de comunicação e, até agora, a considero o mais complexo deles”, diz Liao. Ela destaca, contudo, o potencial da inteligência artificial para revelar dimensões da comunicação animal que escapam à percepção humana, como elementos que podem estar ausentes na linguagem das pessoas, mas presentes em outras espécies.
Como em basicamente todos os estudos envolvendo seres vivos, há preocupações éticas. Tocar sons artificiais para baleias, por exemplo, que transmitem canções culturalmente entre gerações, pode alterar padrões de acasalamento e comportamento social (Robinson, Earth Species Project). “Não está claro se os benefícios de comunicar-se com os animais superam os riscos”, pondera Berthet.
Dominique Potvin, especialista em aves da University of the Sunshine Coast (Austrália), ressalta, para a Nature, uma outra barreira, importantíssima: as diferenças radicais na percepção do mundo. “Nós não somos aves, então nunca saberemos exatamente o que um pássaro pensa ao ouvir outro pássaro”, afirma. Ainda assim, a cientista vê valor em tentar compreender: “Sempre haverá mistério, mas cada avanço amplia nosso entendimento”.









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