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Acreditou-se por muito tempo que apenas adolescentes mulheres desenvolviam o transtorno alimentar anoréxico e, apesar de o próprio Lacan haver apontado, ainda em 1964, para a anorexia infantil ao afirmar que o menino anoréxico come nada, existem até hoje psicanalistas que consideram seu início somente na adolescência, coincidindo para alguns com o início da anorexia mental propriamente dita ou anorexia verdadeira.

É importante atentar que Lacan não disse que o menino não comia nada. Disse: come nada. O comer nada dos meninos e meninas na infância, bem como das jovens anoréxicas adolescentes a que Lacan se refere, aponta para algo em comum entre a anorexia da infância e a da adolescência, apesar da existência de inúmeras diferenças. A maior diferença entre elas consiste na relevância sexual da anorexia do início da puberdade, afetando preponderantemente as mulheres, numa proporção de 9 mulheres jovens a cada dez casos, diferente da anorexia na fase infantil em que as crianças são acometidas na mesma proporção independente do gênero.

Inicialmente o DSM-PC (Manual Diagnóstico e Estatístico para Cuidados Primários) – variação do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) que ajuda psiquiatras, pediatras e outros profissionais de saúde a identificar e tratar problemas comportamentais e de desenvolvimento, indicava apenas características associadas ao transtornos, mas não apontava os fatores propriamente constitutivos, bem como reduzia diversos tipos de transtornos alimentares a apenas uma categoria diagnóstica. Esse quadro muda a partir dos estudos de Irene Chatoor, que retira os transtornos alimentares infantis de um enquadramento rígido estabelecido pelo DSM, ao apresentar suas causas como multifatoriais e centradas na dimensão relacional e evolutiva, reconhecendo, dessa forma, a possibilidade de profundas transformações orgânicas em decorrência dos estímulos ambientais.

Os estudos de Chatoor foram prontamente incorporados ao sistema CD:0-3R – Classificação Diagnóstica 0-3, Revisão 1 – criado para diagnosticar problemas de saúde mental e transtornos de desenvolvimento na infância, especificamente os da faixa etária entre 0 à 3 anos de idade, inaugurando a importância da presença materna nessas fases para que a criança possa alcancar um equilibrio entre o vínculo com a mãe e o caminho para a autonomia. Para isso, classificou o período da seguinte forma: entre 0 a 2 meses a criança aprende a reconhecer os sinais de fome e saciedade; de 2 a 4 meses é o período em que ocorre uma interação entre o menino e o cuidador, com o intuito de alcançar a sua autorregulação alimentar; finalmente, de 6 meses a 3 anos, fase que vai até o desmame, o menino passa para uma alimentação autônoma.

Bernard Brusset trouxe enorme contribuição ao considerar importante no transtorno anoréxico não só a perda da fome ou alteração do apetite, mas a recusa. Já para Lacan, o menino anoréxico é uma comprovação de que a anorexia mental é “comer o nada”. O objeto nada é o que se destaca no ensinamento de Lacan. Ele vê a recusa do menino anoréxico de comer o nada como um ato, uma decisão subjetiva. Ao pensar no menino como um sujeito, mesmo que essa recusa tenha ocorrido em razão de algo do Outro que o afetou, o menino ao fazer esse arranjo, em outras palavras, decidir comer o nada, consegue identificar-se com algo que o faz escapar desse Outro. Portanto, ao defender a ideia do menino como um sujeito ativo, reafirma uma teoria anterior de que o desmame, diferente do que muitos pensam, não é algo que a criança sofre passivamente, e sim uma decisão que ela põe em prática. Com isso, falamos da formação do menino enquanto sujeito ainda na primeira infância.

Embora as teorias lacanianas tenham contribuído sobremaneira para os estudos da anorexia na infância, não foram conclusivas pelo fato de, além da intenção do tipo dialético-separatista, também haver um eixo anti-separatista no qual o objeto “nada” (comer o nada), leva o sujeito anoréxico à inação, numa espécie de gozo solitário. São os estudos de Manuel Fernández Blanco que jogam luz no transtorno anoréxico infantil. Ele começa estruturando sua tese em torno de que a anorexia no lactante e na primeira infânciaocorrem devido ao estabelecimento inconsciente de uma completa aversão na relação mãe-filho. Nesse ponto, Blanco vai ao encontro da Teoria lacaniana que relaciona anorexia a um vínculo asfixiante entre mãe e filho.

A segunda pemissa de Blanco é sobre uma aposta inconsciente da criança de fazer no Outro uma cratera, a partir de sua própria morte, já que acredita não conseguir livrar-se no campo simbólico desse Outro que o asfixia. Com esse ato, o menino acaba criando um paradoxo: escapar da morte subjetiva, encarnando a morte no real do corpo. Assim, a partir dessas duas premissas o autor estabelece uma separação entre as anorexias precoces do tipo inerte e passiva, que se desenvolvem na fase mais primária e têm grave evolução, e as anorexias de oposição que se desenvolvem a partir do sexto mês.

Esgotar o tema em poucas linhas é tarefa impossível. Porem, é importante lembrar que a presença de uma mãe que não reconhece a subjetividade e demandas do filho, focada tão somente nas necessidades físicas dele, bem como a figura de um pai distante no desejo materno, são algumas das características encontradas tanto nas anorexias infantis quanto nas da adolescência. Estar atento para alterações comportamentais da criança permitirá maior brevidade no acolhimento do seu sofrimento.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifranceflorenzano

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