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Quando comecei a acreditar que pensava única e exclusivamente pela minha cabeça, imaginava que precisava impor determinadas ideias e comportamentos porque seria uma forma de manter minha “identidade”. Depois passei a observar que havia muito do coletivo em mim, mas ainda acreditava que a essência me pertencia. Por fim, o real nu e cru venceu minha ilusão de único, inédito, original. De fato, a única prerrogativa que nos resta é “escolher” o menu que mais nos apetece.

Nestes dias, imersa em uma cultura completamente diferente da minha, tenho pensado ainda mais amiúde em “O mal estar da civilização”, uma das extraordinárias obras escrita por Sigmund Freud, que dialoga entre a liberdade individual e as repressões impostas pela civilização, numa batalha sem trégua entre o desejo do sujeito e as expectativas da sociedade. No texto, Freud argumenta que embora precisemos de uma certa conformidade e ordem para que a civilização prospere, o preço que o indivíduo paga sufocando sua subjetividade é, em muitos casos, avassalador.

Freud elencou três situações, as quais considerou como de impasse, que levam o ser humano a sofrer. A palavra impasse tem origem francesa e significa, literalmente, uma rua sem saída; portanto, refere-se a um problema sem solução, algo que impede o avanço. São eles: o declínio natural do corpo, as deficiências ou falhas das nossas leis e as imposições subjetivas de satisfação.

A psicanálise surge a partir do debruçar de Freud sobre o sofrimento humano e nos auxilia a compreender o mal-estar na sociedade contemporânea. Vemos de um lado os sintomas sociais, como a aceleração do tempo e do consumo, a intolerância, o uso das redes sociais para validação, a insegurança, a dificuldade de estabelecer laços sociais duradouros. E, por outro lado, os sintomas individuais em forma de depressão, ansiedade, pânico, adicções, compulsões e tantos outros. Para compreendermos melhor a origem dessa problemática, precisamos olhar o todo. Refiro-me a procurar entender o papel do mal-estar e do sofrimento na formação do sintoma, uma vez que este é produto dos demais.

O que é, então, o mal-estar da civilização? Sabe aquela frase que repetimos, constantemente, “a sua liberdade vai até onde começa a minha”? Pois é, criamos leis, contratos, acordos, na tentativa de tornar a vida mais segura, funcional e aprazível, mas o problema é que essas mesmas regras vão nos massacrando, restringindo e reprimindo. O preço que pagamos para que a sociedade funcione exige que todos abram mão de determinadas coisas e, por fim, elas acabam pesando tanto que o mal-estar passa ser pior, gerando quebra de laços sociais ou afetivos, isolamento, segregação e outros tantos.

Todas essas regulações criam um ambiente de sofrimento que, quando dentro do razoavelmente suportável, faz com que as pessoas produzam mais; entretanto, quando esse limite é ultrapassado, o que ocorre com frequência, as pessoas adoecem e são simplesmente descartadas pelo sistema como um bagaço.

Podemos, nessa linha de raciocínio, inferir que o trabalho é a razão do adoecimento? Não. O problema está nas relações. Está nesse outro, cheio de metas e métodos com o qual precisamos lidar e dialogar. Com o agravante de poder tornar o sofrimento ainda maior quando  falamos da nossa dor e ele não a valida, não a reconhece como legítima.

Os sintomas surgem da forma como sentimos e internalizamos os acontecimentos.  É preciso que se reconheça o mal-estar social como responsável pela enxurrada de diagnósticos. Nós nos enganamos ao imaginarmos que quanto mais desenvolvida a sociedade do ponto de vista científico, tecnológico e organizacional, mais as pessoas são felizes. Podemos constatar essa falácia ao analisarmos altas taxas de suicídios em países com os maiores índices de desenvolvimento humano.

O ideal egoico de felicidade através do consumo voraz de gadgets e a falsa concepção de que o sucesso é possível bastando querer e se esforçar cria um sentimento de incapacidade brutal e, a reboque, a ideia de não pertencimento, de apequenamento, de isolamento e completo desamparo. Não há receita de bolo para a cura do sofrimento, mas, certamente, validar o sofrimento do outro e repensar o ideal de felicidade, bem como o conceito de sucesso, aliviaria sobremaneira sofrimentos e sintomas.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifranceflorenzano

Verissimo e alguns excertos de suas crônicas

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